Meu encontro com Armando Câmara[i].


Jacy de Souza Mendonça é Livre Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-professor de Filosofia do Direito do curso de Pós-graduação da PUC-SP.


 

A DESCOBERTA

  

            Nos anos 40, chegou ao Colégio São Francisco, na cidade do Rio Grande, onde começava meu curso primário , o Irmão Fidêncio, da Congregação Marista, que mais tarde retomou seu nome de batismo, Ernesto Dewes.  Chamava a atenção  de todos seu vigor físico e principalmente a forma como dominava o Colégio inteiro. Constatado o início de qualquer desordem, o forte silvo de um apito, associado a seu extraordinário vozeirão, paralisava todos os alunos durante o recreio. Era o mesmo vozeirão que dirigia o batalhão da escola, nos ensaios e desfiles, sua banda nas paradas cívicas da Semana da Pátria, e era o mesmo vozeirão que arrastava o coral nas missas de Domingo e nas festas escolares. Analisado hoje, com o benefício do tempo passado, talvez se deva reconhecer que não foi um grande professor. Mas não foi um grande professor porque estava preocupado em ser muito mais do que isso: estava preocupado em ser um grande educador. Foi graças a ele que adquiri, muito cedo, o hábito de ler e conquistei o refinamento gradativo de minhas leituras. Começou simplesmente por me recomendar as aventuras de Karl May. Quando toda a coleção existente na biblioteca da escola tinha sido lida e relida, eu já tinha contraído o vício da leitura e então os livros inicialmente recomendados foram sendo substituídos pela mais fina literatura nacional e estrangeira. A ele devo, assim, o contato com o primeiro livro de Lógica e de História da Filosofia, quando ainda cursava o Ginásio, algo que hoje ainda me parece inacreditável. Na mesma época, abriu meu interesse para os artigos e os livros de Gustavo Corção, os textos de Tristão de Ataíde, Fulton Sheen e Jacques Maritain. E não ficou por aí. O mundo da música, no que ele era  simplesmente fabuloso, me foi aberto também por ele. Não sei quando e como estudou música, pois saiu criança da vida rural para a escola de formação marista. Mas tocava com a mais absoluta naturalidade e maestria desde o violão e a sanfona do interior gaúcho até o piano e o órgão eletrônico. Compunha peças para piano, órgão, orquestra e coral a várias vozes, de um dia para o outro, até enquanto conversava conosco. Tinha um senso de harmonia que encantava os músicos profissionais, que a ele recorriam constantemente. Logo de chegada ao Colégio, organizou o coral para cantar nas missas da Matriz de São Pedro e nas festas da escola. Com apenas 6 anos de idade, apresentei-me  como candidato...  mas fui rejeitado:

- Tu és muito piá ! disse-me ele.

Esta ofensa ficou depositada em minha memória de infância e nunca foi esquecida, até que, trinta anos mais tarde, quando veio visitar-me em São Paulo, cobrei-lhe uma reparação. Um ano depois de escutá-la, aos 7 anos de idade, já não me sentia tão piá e apresentei-me de novo como candidato ao coral. Fui então admitido, e nunca mais deixei de cantar. Houve um momento em que me sentia o mais eficiente do grupo de meninos sopranos, e tinha certeza de que assim era também por ele considerado. Com a idade, tive que passar para a segunda voz, atravessar pelos tenores, chegar aos barítonos e cantei até com os baixos. Como resultado desse périplo, conhecia todas as vozes da maioria das músicas que compunham nosso vasto repertório e era capaz de mudar de uma para a outra, conforme a necessidade do momento. Bem que ele, como maestro, se aproveitava dessa habilidade. Então foi a hora de conhecer Wagner, Bach, Handel, Hydn, Beethoven, com algumas concessões operísticas, mas sem a mínima tolerância à música popular. A Escola de Canto Lírico da Prof. Inah Emmil Martensen precisou de vozes masculinas para seu coral e lá estava eu entre os recomendados pelo Irmão Fidêncio. Foi o magnífico encontro com as árias de óperas e operetas, as maravilhosas peças corais e até a experiência de palco. Tudo isso e muito mais, devo àquele fantástico pedagogo, que infelizmente não pode mais ler esse testemunho de gratidão existencial, que, embora póstumo, desejo lhe prestar.

 Pois foi o Irmão Fidêncio quem me aproximou, em 1945, de Armando Câmara. A II Grande Guerra estava terminando e havia um crescente movimento popular pelo fim da ditadura Vargas e pela redemocratização do País. A mesma Igreja Católica que, com o correr do tempo, se deixou seduzir pela ditadura do proletariado, estava, naquela época, empenhada na defesa da democracia, através de sua Ação Católica. Comícios tinham lugar por todo o interior do Rio Grande do Sul. Certo dia, o Irmão Fidêncio me disse que haveria um comício na Xavier Ferreira, a praça principal da cidade do Rio Grande, no qual falariam, entre outras, duas pessoas que ele reputava notáveis: Adroaldo Mesquita da Costa e Armando Câmara. Recomendou-me ouvi-los. Eu não tinha então a menor idéia do que fosse comício, ditadura ou democracia. Sentia mesmo certo mal-estar pela possibilidade de associação daquele movimento político com a alteração da ordem e da disciplina, coisas que ainda confundia com o respeito cego à autoridade constituída. Quem sabe até, no fundo, alimentasse o temor de ser envolvido em desordens, sendo, como era, absolutamente disciplinado. Mas me acostumara a levar a sério todas as recomendações do Irmão Fidêncio e por isso fui assistir ao primeiro comício de minha vida. Não me lembro dos demais oradores que participaram do evento, mas lembro-me muito bem dos dois recomendados. Adroaldo  ficou em minha memória como um vulcão em ebulição, pelo arroubo oratório, a riqueza do palavreado e até o timbre de sua voz. Realmente incendiava a massa. Arrancou aplausos frenéticos. Armando Câmara era também um orador maravilhoso, arrojado, empolgante, mas impressionava muito mais pelo que dizia do que pela forma como dizia. Mais uma vez o Irmão Fidêncio tinha razão. Fiquei encantado. Na verdade, não me recordo de nada do que disseram, mas jamais esqueci o impacto que me causaram aquelas duas figuras.

 

O ENCONTRO COM O MESTRE

  

O próximo contato com Armando Câmara resultou de uma coincidência e se constituiu numa surpresa. No início de 1949, terminado o segundo ano colegial no Colégio São Francisco, na cidade de Rio Grande, o irmão Fidêncio, àquela altura Diretor da Escola, resolveu não manter a terceira série do curso. Em primeiro lugar, por motivos financeiros, pois a turma de estudantes era muito pequena e a folha de pagamento de professores que se fazia necessária era muito elevada; em segundo lugar, pela dificuldade em encontrar no grupo dos Irmãos Maristas que formavam o Colégio, ou mesmo na cidade de Rio Grande, professores adequados, que pudessem proporcionar aos estudantes êxito nos exames vestibulares à Universidade. Convenceu então os dezoito alunos que formariam a terceira série a se transferirem em massa para Porto Alegre, com  matrícula assegurada no Colégio Nossa Senhora do Rosário, da mesma Congregação.

 Eu já tinha tomado a decisão de estudar Direito, mas não me decidira ainda entre as duas Faculdades de Porto Alegre e a de Pelotas. Estimulado pela decisão do grupo e pelo apoio de meu pai, mudei-me para Porto Alegre. No Colégio do Rosário, fiquei sabendo que os irmãos Maristas eram mantenedores da Universidade Católica, hoje a PUC do Rio Grande do Sul, da qual era Reitor Armando Câmara, aquela mesma figura que tanto me impressionara. Afastado temporariamente por Getúlio Vargas do exercício do magistério na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tinha ele se empenhado, junto com a Congregação Marista, pela fundação da Universidade Católica, para a qual foi escolhido como seu primeiro Reitor pelo Arcebispado. Na nova Universidade exercia ele o magistério na cadeira de Introdução à Ciência do Direito, na primeira série da Faculdade de Direito e na cadeira de Metafísica, da Faculdade de Filosofia. Essa circunstância foi decisiva para minha opção.

O sistema didático do Professor Câmara na primeira série da Faculdade de Direito causava grande impacto. No Curso Colegial, todo o conteúdo didático era axiomático, de forma que o aluno devia exercitar apenas sua capacidade de memorização. O método do Professor Câmara, ao contrário, ao menos aparentemente, não afirmava nem impunha aceitação de nada. Começava todas as aulas formulando alguma pergunta e ia, de questão em questão, perseguindo seu objetivo, buscando chegar exatamente onde planejara chegar. A maioria dos estudantes se ocultava, por não estar habituada àquele diálogo desigual. Alguns, ao contrário, gostavam muito e se sentiam envaidecidos e profundamente valorizados como destinatários das perguntas, mesmo que sem condições de oferecer respostas satisfatórias. Mas o Professor Câmara não estava mesmo interessado em respostas brilhantes. Qualquer resposta o satisfazia, mesmo  a mais errada e absurda, pois, a partir dela, prosseguia em sua argumentação. Optei pela atitude discreta. Participei desses diálogos didáticos apenas quando inevitáveis, mas esquivei-me ao máximo. Meu maior interesse consistia em fazer anotações, o que não era também fácil. Ele falava muito rápido ( quase tão rápido quanto sua capacidade de ideação ), com um curioso sotaque de gaúcho da fronteira, ao qual, como riograndino, eu não estava habituado, omitindo às vezes algumas sílabas para poder ser ainda mais rápido. Como pressupunha conhecimentos, hábitos mentais e interesses que evidentemente não tínhamos, deixava-nos em grande dificuldade. Um colega teve a extraordinária idéia de propor à turma a contratação de um taquígrafo da Assembléia Legislativa do Estado, acostumado a captar os Discursos dos Deputados, para colher as anotações de aula. Inspirados pelos hábitos do Curso Colegial, vibramos com a idéia. Quem não gostou foi exatamente o Professor Câmara, pois o que lhe agradava era o diálogo com os estudantes e não a adequada anotação de suas palavras para fins de memorização. Mas nunca se oporia a tais iniciativas. Parece-me, isso sim, que passou a imprimir velocidade ainda maior a suas exposições. O primeiro resultado negativo foi o aumento de nossas dificuldades de apreensão; o segundo, o total fracasso do taquígrafo, que desistiu da tarefa a meio caminho por sentir-se absolutamente incapacitado de cumprir a contento seu contrato.

Nas provas, o Professor Câmara não era nada exigente. Satisfazia-se com quase nada e, conforme vim a descobrir como seu assistente, quando o aluno revelava dificuldade, admitia, até com certa dose de remorso, que o responsável pelo fracasso poderia ter sido ele, como professor, por não ter se comunicado satisfatoriamente. Por princípio, atribuía a cada examinando o grau que necessitasse, o que sempre me pareceu injusto. Acontece que eu, tanto naquela época quanto nos dez anos em que fui seu assistente, me preocupava muito com a equidade, comparando o grau de cada aluno com o dos demais, enquanto que, para ele, o importante era proteger os estudantes menos capazes...

Concluída a primeira série da Faculdade de Direito, fiz novo vestibular e matriculei-me também no Curso de Filosofia da mesma Universidade, indo assistir suas aulas de Gnosiologia e Psicologia. Mas, no final do segundo ano, ocorreu um desentendimento entre ele e a Congregação dos Irmãos Marista, do qual não possuo elementos informativos suficientes e, assim, não tenho condições para julgar o mérito, mas cujo resultado foi seu pedido de afastamento tanto da administração quanto do magistério da Universidade Católica. Não me matriculei, por isso, na terceira série do Curso de Filosofia no ano seguinte.

 

OS SERÕES

  

            Na terceira série da Faculdade de Direito, precisando trabalhar, consegui emprego como datilógrafo no escritório de advocacia de Dorival Silva Schmid, que exercia também o cargo de Professor de História, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e que, vim a descobrir em seguida, era amigo íntimo e fã incondicional de Armando Câmara. Foi Dorival quem me levou a participar dos primeiros serões no Solar dos Câmara. Senti-me muito pequeno ouvindo o debate político e filosófico que Armando Câmara travava com homens da envergadura de Ruy Cirne Lima, José Fernando Carneiro, os irmãos Brito Velho, os irmãos Martins Costa, Carlos Galvez ( seu discípulo predileto ), Francisco Simmch Jr , Eloi José da Rocha, Ângelo Ricci, Ernani Maria Fiori, Pe. Thiesen e muitos outros. Sei que neste passo estou cometendo mais um grave pecado de omissão, mas estes são os nomes que vêm à minha mente no instante em que escrevo estas linhas. Não se tratava de uma conversa de lazer, embora ele por vezes a designasse como charla de galpão. Fumavam tanto quanto falavam. Ruy e seu inesquecível charuto, Armando Câmara acendendo um cigarro no outro. Mas todos cultivaram estratégico silêncio quando Armando Câmara tomava parte no debate. Sua personalidade era mesmo dominante. Em qualquer lugar em que estivesse ou chegasse, era o centro natural e quase monopolístico das atenções. Certa noite, comentavam recente artigo de Gustavo Corção sobre Georges Bernanos, publicado nos jornais de grande circulação do País. Dorival lembrou-se de minha experiência anterior como locutor de  rádio e, graças a isso, tive que assumir  o papel de ledor do grupo... Apesar da efetiva e agradável experiência como escritor e leitor de crônicas na Rádio Cultura Riograndinha, na Rádio Farroupilha e na Rádio Difusora de Porto Alegre, enfrentei inusitada tensão no cumprimento dessa nova missão...

Eram debates maravilhosos, entrecortados apenas pelas intensas e frequentes baforadas de tabaco, às quais nunca me habituei, e pelas ainda mais frequentes rodadas de cafezinho, única bebida disponível, que o Professor Câmara ainda chamava de carioquinha...

 

O POLÍTICO

 

Em 1995, o PTB lançou João Goulart candidato ao Senado da República pelo Rio Grande do Sul. Parecia imbatível em sua própria casa, na querência de seu padrinho Getúlio Vargas, no berço do PTB. Armando Câmara era, até por tradição familiar, do Partido Libertador, mas sem nenhuma atuação político partidária anterior. Numa coligação com o PSD, a UDN e o PDC, o nome dele foi lançado como candidato ao Senado, tendo Mem de Sá como Vice.

 Ao contrário do que habitualmente fazem os candidatos a cargos eletivos, não fez campanha alguma. Creio que tenha participado apenas de seis comícios pelo interior do Estado, onde pronunciou discursos de elevado cunho filosófico e sociológico, todos, porém, com extraordinária repercussão. Em Porto Alegre, um grupo de estudantes universitários integrou-se ao movimento e organizou um comício, na sede da Associação dos Professores Católicos, que, aliás, tinha sido fundada por ele. Fui convidado a ser um dos três estudantes a discursar naquela oportunidade e assim tive a primeira e única atuação político-partidária de minha vida.

Um ato público, no Teatro São Pedro, em Porto Alegre, marcou a aceitação das diversas candidaturas da coligação. Nele, Armando Câmara pronunciou o discurso que transcrevo na íntegra, por ser importante para se conhecer sua postura em relação à missão política:

DISCURSO

A RENÚNCIA

 

Discurso político de conteúdo teológico, filosófico, sociológico ou psicológico, como este, que representa a aceitação da candidatura e aqueles que foram proferidos nos comícios que tiveram lugar em diversas regiões do Rio Grande do Sul, parece que não poderia ter a mínima força eleitoral, mas o fato é que ele foi eleito  Senador da República, numa clara resposta dos gaúchos de então contra a tendência para a esquerda, e numa clara opção pelos valores do cristianismo. Derrotou nada menos que João Goulart, o pupilo dileto de Getúlio Vargas, na terra natal de ambos, em pleito direto.

Mas por pouco tempo e com pouca intensidade desempenhou suas funções no Congresso Nacional. Em sua rigorosa escala hierárquica, jamais iria sobrepor reuniões onde eram discutidos projetos de lei de interesses regionais ou até pessoais, sem a mínima importância para o País, às preocupações com sua própria saúde e às atenções que dedicava à tia Alice, beirando os noventa anos de idade, a quem tratava ao mesmo tempo como se fora a mãe que mal conheceu, a irmã, a esposa ou a filha que não teve. Não foi um parlamentar assíduo e seu mandato teve curta duração. Sequer houve tempo para a posse de Leônidas Xausa, que já aceitara o convite para ser seu assessor legislativo. Não resistiu ao fato de, um ano depois de eleito, Jango ser guindado à Vice Presidência da República na chapa de Juscelino e assumir consequentemente a Presidência do Senado Federal, em conformidade com os dispositivos da Constituição Federal então em vigor. Em nome da coerência, entendia que, se havia sido escolhido Senador pelo povo, contra Jango, contra a esquerda, e se posteriormente o mesmo povo elegia Jango Presidente do Senado Federal, estava implicitamente lhe cassando o mandato outorgado e, assim, impunha-se a ele o dever moral da renúncia. Além do mais, abominava o despreparo intelectual de Jango e seu namoro escandaloso com as esquerdas. Acima de tudo, como me disse, certa feita, com relação a Jango, não estava disposto a “submeter-se ao primado do primário”.

Num gesto inédito na História do Brasil, na primeira oportunidade em que João Goulart assumiu a presidência da casa, em sua presença, despediu-se do Congresso Nacional nesses termos:

DOCUMENTO DE RENÚNCIA

 

O PARANINFO

 

Em 1954, ainda durante o período da campanha eleitoral contra Jango, chegávamos ao final do Curso de Direito. Nos preparativos da formatura, no momento da escolha do Paraninfo, um colega propôs o nome de Armando Câmara. Argumentou ter sido ele um professor inesquecível, merecedor de uma demonstração de apoio de nossa parte por três motivos básicos: em primeiro lugar, ainda que de forma tardia e indireta, como reparação pelos resultados de seu conflito  com os Irmãos Maristas, quando sacrificou o exercício do magistério, que tanto amava, em prol de sua luta pela autonomia da Universidade em relação à entidade mantenedora; em segundo lugar, por  termos sido a última turma da Faculdade que o teve como professor; em terceiro lugar, por sua patriótica batalha contra o janguismo, na qual sacrificou, com total despreendimento, o cargo de Senador da República, ambicionado por tanta gente. Lamentei para sempre não ter sido o autor da proposta, mas assumi com todas as forças a missão de viabilizá-la. Algumas dificuldades, efetivamente, precisavam ainda ser superadas: em primeiro lugar, obter a aceitação por parte dele, que poderia preferir evitar o reencontro com os Irmãos Maristas em tais circunstâncias, além de tudo, dentro da casa deles; em segundo, evitar uma situação muito provável: que ele, aceitando o convite, num gesto  de cortesia para conosco, viesse a criar um pretexto posterior para não comparecer à cerimônia de colação de grau, pelas mesmas razões anteriores e porque, desde o momento do conflito com os Maristas, nunca mais entrara no prédio da Faculdade. Fui encarregado da consulta prévia e da obtenção da garantia de superação dessas dificuldades previstas pela turma. Logrei pleno êxito. Com isso, realizamos a votação para escolha do paraninfo e ele recebeu a quase unanimidade dos votos. Seguiu-se a visita de uma comissão de formandos ao solar dos Câmara, da qual evidentemente participei e da qual guardamos orgulhosos uma das raras fotos com ele. Com a dignidade de um cavalheiro e a tolerância de um cristão, retornou pela primeira vez ao prédio da Universidade que fundara e manteve um relacionamento com elevado nível de cordialidade com todos os membros da Congregação Marista, que o receberam, capitaneados pelo Irmão José Otão. Com extraordinária alegria, eles registraram o fato como o desfecho feliz de um incidente lamentável e indesejável.

Das mãos dele recebi meu diploma de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, outra foto que guardo com carinho. Sua oração de paraninfo é uma das poucas peças de natureza jurídico-filosófica que deixou escrita. Isso nós devemos, em parte, à dedicada eficiência do Alexandre Gruszynski, que gravou o improviso e, por outra parte, à minha premonição ao entregar-lhe o texto datilografado para uma prometida revisão: tomei a precaução de guardar uma cópia comigo...

A ORAÇÃO DO PARANINFO

 

O CONVITE

 

 Seguiu-se meu concurso para Promotor Público e o exercício dessa função durante dois anos em São Pedro do Sul. Em seguida, veio a remoção para Canoas, que possibilitou o almejado sonho de voltar a viver em Porto Alegre e retornar à Faculdade. Em 1959, estava matriculado de novo no Curso de Filosofia, desta vez na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com o objetivo de ter aulas de Filosofia com Armando Câmara. No primeiro dia de aula, segui meu hábito de estudante atento e concentrado em recolher anotações. A diferença em relação aos cursos anteriores estava apenas em minha localização na sala de aula, pois, ao invés da primeira fila, como sempre preferi, recolhi-me, por prudência, à última.  Passados os primeiros minutos, fui reconhecido e não pude fugir de tornar-me, a partir daquele instante, o alvo de quase todas as perguntas didáticas do dia. Terminada a aula, recebi o convite inesperado de ir visitá-lo no solar, ao anoitecer do mesmo dia. Lá recebi a estonteante surpresa: o convite para assumir o cargo de assistente de Filosofia do Direito. Apesar da surpresa, que dificultava a organização das idéias, apesar do profundo desejo de aceitar o fantástico convite, e apesar da clara consciência de que não poderia sequer parecer indelicado com ele, usei todos os argumentos possíveis e imagináveis para justificar minha dolorosa recusa: desde os mais simples e formais, como o fato de não ser formado pela Universidade Federal e sim  pela Faculdade de Direito da Universidade Católica, até o tiro que me parecia mortal: eu realmente não estava preparado para a função e ele sabia muito bem isso. Tudo inútil. Da procedência escolar, como eu já esperava, nem tomou conhecimento; quanto à falta de preparo, contava com que eu rapidamente chegaria a um estágio satisfatório e, além disso, comprometia-se a não exigir de mim qualquer trabalho docente até o final daquele ano. Mesmo assim resisti e saí do solar, tarde da noite, deixando na soleira daquela porta, que tantas vezes cruzaria nos dez anos subsequentes, o último desagradável e repetido não. Prometi, isso sim, dedicar todo o meu tempo disponível, a partir daquele momento, ao estudo da Filosofia do Direito, para, mais tarde, quando preenchesse as condições mínimas, encontrar-me em condições de eventualmente aproveitar outra oportunidade.

Em verdade, eu queria muito lecionar na Faculdade de Direito, mas me contentaria com um começo na Universidade Católica em lugar da Federal e me deixava atrair por disciplinas menos significativas, como o Direito Penal ou Civil. Mais do que isso, no fundo de minha consciência, se se tratasse de outro professor talvez corresse o risco irresponsável de aceitar a missão e buscar em seguida o implemento das condições, mas ser assistente dele estava muito além de minhas expectativas, e muito acima de minhas forças psíquicas e de minha coragem.

Na semana seguinte, retornei ao mesmo banco da Faculdade de Filosofia, durante a aula dele, com o firme propósito de permanecer o mais oculto possível, pois tinha graves preocupações, decorrentes do diálogo da semana anterior no solar. Não me livrei, porém, do destino de parceiro  do diálogo didático, agora como monopolizador involuntário... Pior do que isso foi, ao final da aula, a última frase a mim dirigida. Funcionou como um petardo ensurdecedor e inesquecível:

- Doutor Mendonça, o senhor está convidado a ser meu assistente de Filosofia do Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul !

Não é difícil imaginar o que isso representou para todos os demais colegas, que se voltaram espantados para mim... nem é difícil imaginar o que representou para mim mesmo. Dizer sim naquele momento, apesar das circunstâncias, seria negar toda a minha argumentação da semana anterior e, pior que isso, seria destruir minha coerência intelectual e moral. Dizer não, por outro lado, seria uma deselegância muito séria, senão mesmo uma afronta, um desaforo para aquele extraordinário homem, que tanto apreciava. Não consegui responder. Apenas balbuciei:

- Professor, minhas condições pessoais em nada mudaram desde a última vez em que conversamos sobre esse assunto...

- Por elas respondo eu !  - foi a resposta fatal, que me deixou sem qualquer saída.

A partir daí, tive muito apoio não só de minha mulher, como também de grandes amigos, como o Cid Furtado, que tinha sido convidado  e recusara a função, o Werther Faria, que colocou à minha disposição a extraordinária biblioteca de pensador profundo, curioso e culto e ainda me presenteou com várias obras, mas muito especialmente o Lenine Nequete, que viera a conhecer ao chegar em  Canoas e cujas extraordinárias qualidades de homem e pensador passei em seguida a admirar. Todos me estimularam a enfrentar a gravidade do desafio. Cancelei, então, pela segunda vez, e agora em definitivo, a matrícula no Curso de Filosofia. Fechei-me em casa, de onde praticamente só saía para cumprir as funções de Promotor Público em Canoas, assistir às aulas de Filosofia do Direito ministradas por ele e visitar meus pais. Enfrentei uma gastrite terrível, de fundo sabidamente emocional e por isso temporariamente incurável. Li tudo o que era possível ler sobre a matéria: os livros que tinha em minha biblioteca, os poucos disponíveis nas livrarias de Porto Alegre, assim como os que o Nequete, o  Werther e o próprio Prof. Câmara me emprestaram. Foi um dos anos mais tensos e intensos de minha vida. Mas ele cumpriu rigorosamente, como era de seu estilo, o compromisso que assumira: só exigiu de mim atividade docente no início do ano seguinte. A partir daí, até o final do ano de 1968, coube-me orientar os alunos da quinta série da Faculdade de Direito da Universidade Federal  do Rio Grande do Sul sobre os fundamentos gnosiológicos do problema conceitual do Direito. Durante dez anos fui o aluno mais assíduo da Faculdade de Direito, pois não perdi nenhuma aula dele. Entrementes, a convite do Galeno Lacerda, vim a sucedê-lo na cadeira de Filosofia do Direito da PUC; posteriormente, com a criação da Faculdade de Direito de Caxias do Sul, fui incluído em seu primeiro corpo docente, para ministrar a mesma matéria.

Certa feita, manifestei-lhe meus escrúpulos por ter ingressado no magistério por indicação dele e não por concurso. Estimulou-me, então, a prestar concurso para Livre Docência, que há muitos anos não tinha lugar na Faculdade de Direito, e escolheu mesmo a área a que eu deveria me dedicar: os Fundamentos do Imperativo Jurídico. Não foi fácil vencer a burocracia universitária, pois há uma década ao menos a Faculdade não realizava esse tipo de concurso. Mas insisti e, assim, abri uma nova era de concursos para Livre Docência na Faculdade, da qual se beneficiaram também vários outros colegas. Como Armando Câmara seria, pelo regimento da Faculdade, o Presidente da Comissão Examinadora, não pude contar com a orientação direta dele, nem levar-lhe os problemas de pesquisa que enfrentei durante o trabalho. O único professor a quem pude recorrer foi aquele outro extraordinário gênio gaúcho: Ruy Cirne Lima, que me cumulou com uma atenção não menos paternal, como era de seu estilo. Quando terminei de redigir a tese, fui visitar o Prof. Ruy, em sua casa, à noite, submetendo meu original à sua leitura dinâmica global. Leu-a em minha presença, em meio a suas baforadas e charuto. Enquanto lia ( ou via ? ), em alta velocidade, no silêncio de seu escritório, fui me afundando naquela poltrona macia com a desagradável impressão de que não estava se interessando por nada. Ao final, porém, para espanto meu, citava de cor páginas inteiras, como eu seria incapaz de fazê-lo. Depois disso, durante meses, telefonou-me carinhosamente, várias vezes por semana, para recomendar-me alguma pesquisa adicional ou lembrar passagem  de algum autor que poderia me ser útil. Nessas oportunidades, continuava citando de memória minhas palavras ( e eu não lhe deixara nenhuma cópia... ) e, também de memória, a edição, a página e até a estante da Biblioteca da Universidade onde eu poderia encontrar o volume por ele recomendado... Quanto lhe devo ! Quanto lhe sou grato por esse afetuoso apoio !

Durante as provas do concurso para a Livre Docência, Armando Câmara portou-se como o Professor de sempre, produzindo uma argüição rigorosa, a partir de uma análise crítica de minha tese. Destacou, principalmente, o fato de eu não ter aprofundado a pesquisa na área da axiologia jurídica, que era seu tema favorito e do qual, por isso mesmo, eu buscara distância. A nota curiosa, e também reveladora de sua personalidade, ficou por conta do veemente protesto que dirigiu a um dos examinadores do concurso porque, numa das quatro notas que devia atribuir-me, deu grau  nove e não dez, como o fizeram todos os demais examinadores, em todas as quatro notas... Armando Câmara tomou o fato como se tratasse de uma crítica às idéias que eu defendia ( e que no fundo eram as dele ) ou de uma ofensa pessoal dirigida a ele, pois eu era o assistente que ele escolhera... Enquanto isso, eu via o gesto de meus examinadores como grave esbanjamento de prodigalidade. Certamente eu não seria tão generoso, como na verdade não fui quando, mais tarde, participei de comissões examinadores da mesma natureza.

Trabalhei com ele, com muita satisfação e o máximo de dedicação, até o final de 1968, quando ele foi atingido pela aposentadoria compulsória, aos 70 anos de idade. Além de uma parte do programa, cabia-me substituí-lo em suas ausências bem como organizar e corrigir as provas parciais, atribuindo-lhes um grau provisório, que ele se permitia sempre elevar de pelo menos um a dois pontos... Nas provas finais, costumava se perturbar com o fato de os alunos não discorrerem sobre a temática proposta levando em conta as reflexões que ele procurara provocar. Apesar disso distribuía generosos graus finais, até mesmo àqueles que, de qualquer forma, apenas concordavam com suas perguntas, já formuladas com a resposta induzida, e que aguardavam apenas um sim ou um não. Testemunhei, aliás, o dia em que, durante uma prova oral, o estudante atônito não conseguia balbuciar sequer uma palavra e se encontrava em absoluto estado catatônico diante dele, completamente imobilizado. Depois de várias tentativas inúteis de arrancar o mínimo sinal de vida do pobre moço, ele desesperado exclamou:

- Meu amigo, faça, pelo amor de Deus, ao menos um gesto de assentimento com sua cabeça, para não termos que ficar aqui a tarde inteira !

Tudo, provavelmente, para compensar minhas avaliações, que sabia serem rigorosas.

            Com muita freqüência, quando alguém lhe cobrava pelo fato de não ter escrito praticamente nada sobre Filosofia do Direito, ou por não estar escrevendo nada para os pósteros, atribuía a mim a responsabilidade de fazê-lo, dever moral que nunca pude cumprir. Sentia-me, em verdade, platonicamente lisonjeado, mas muito cedo percebi que minha situação de escriba não seria fácil: sempre que me decidia a escrever sobre Filosofia do Direito, enfrentava o problema conseqüente ao fato de não saber com exatidão se as idéias que expunha eram mesmo de minha autoria ou da autoria dele. E não sendo para mim claro esse divisor de águas, corria o risco, de um lado, da apropriação indébita de idéias, o que me levaria a ser taxado de plagiário e, de outro, de que viessem a atribuir a ele minhas fraquezas intelectuais. Por isso, além da tese de concurso, publiquei poucos artigos sobre Filosofia do Direito, que, muitos anos mais tarde, já em São Paulo, sob estímulo insistente e irresistível de amigos queridos, em 1983, reuni num volume sob o título ESTUDOS DE FILOSOFIA DO DIREITO.

 

A REVOLUÇÃO DE 1964

 

Recebeu a revolução de 1964 como uma seqüência natural e inelutável dos fatos políticos que vivera e dos prognósticos que fizera. Esteve sempre certo de que o Brasil, por suas raízes culturais, e a Igreja, por sua missão transcendental, viriam a reagir contra a tendência esquerdizante, tão incentivada por alguns políticos dominantes à época. Até por tradição familiar, aguardava que partisse do Exército Nacional a iniciativa para o cumprimento desse papel retificador dos rumos políticos da nação.

Nas comemorações do primeiro aniversário da revolução, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em março de 1965, fez um pronunciamento corajoso, no qual revela esse estado de espírito. Outro documento que precisa ser transcrito, para o perfeito entendimento de sua personalidade e de suas posições políticas.

A INTERRUPÇÃO DO MAGISTÉRIO

 

Com a aposentadoria compulsória, em novembro de 1968, coube-me sucedê-lo no exercício da cátedra de Filosofia do Direito, conforme era seu desejo. Mas antes que se iniciasse o ano letivo, ou seja, em fevereiro de 1969, fui levado à decisão de mudar-me para São Paulo. Foi o meu querido amigo Milton Carlos Ltiff, então assistente do Presidente da Robert Bosch do Brasil S.A, quem, à minha revelia, deu partida a um processo que terminou me levando a aceitar a gerência dos serviços jurídicos da Volkswagen do Brasil.

Não interessa relatar aqui o ocorrido, mas apenas aquilo que, nesse episódio, diz respeito a meu relacionamento com Armando Câmara. Sentia, no fundo da alma, a grande dificuldade de explicar-lhe que, depois de dez anos de espera e preparação, no exato momento em que chegava à posição desejada por mim e por ele, ou seja, assumir a cadeira de Filosofia do Direito, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a ela renunciava. Dura foi a preparação psicológica para a visita noturna ao solar, quando precisava informá-lo sobre minha decisão. Comecei por relatar-lhe os detalhes do fato, prossegui explicando as vantagens financeiras que me eram oferecidas, em comparação com os vencimentos de Promotor Público do Rio Grande do Sul e de Professor Universitário, completei com uma exposição sobre minhas responsabilidades de pai de quatro filhas, com custos familiares elevados e receita apertada. Procurei, enfim, deixar claro o irresistível do convite, embora de atração absolutamente material. Não titubeei em reconhecer espontaneamente que sabia estar trocando a primogenitura por um prato de Ientilhas, palavras que enfatizei durante minha exposição. A tudo ele escutou silencioso e aparentemente taciturno, ampliando, assim, minha angústia. Ao final, o julgamento para mim inesperado naquele momento, mas que, na verdade, era, como sempre, absolutamente coerente com sua filosofia de vida:               

- Doutor, a Providência bate à sua porta e o senhor ainda protesta?             Assim era ele. O mesmo homem que assumira todas as minhas fraquezas, na hora do convite, que me estimulara a estudar e crescer, que esperava de mim ser seu sucessor e escriba, que poderia frustar-se com a inesperada ruptura de tudo isso, escutava, acima de tudo, a voz de Deus nos mínimos sinais da existência e estava sempre pronto para a ela se curvar e a Ele agradecer, num permanente gesto de oração.

Saí do solar tão pequeno como quando entrara pela primeira vez. Assumi, então, minha nova forma de vida, na área empresarial, e tentei, durante dez anos, manter em paralelo o exercício do magistério, nas Faculdades de Direito de São Bernardo do Campo e da PUC de São Paulo. Principalmente no curso de Mestrado desta última, durante cinco anos, ao lado de André Franco Montoro e Tércio Sampaio Ferraz, defendi e divulguei as idéias dele. Escrevi-lhe car­tas que, como esperava e era de seu estilo, ficaram sem resposta. Visitei-o nas poucas viagens a Porto Alegre, oportunidades em que re­atamos agradáveis diálogos. Enquanto isso, levava seu nome e seu pensamento para fora das fronteiras gaúchas.

 

A SEMANA INTERNACIONAL DE FILOSOFIA

 

            Em 1972, a Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos, presidida pelo Pe. Stanislavs Ládusãns S.J., organizou em São Paulo a I Semana Internacional de Filosofia. Ajudei o Pe. Ládusãns a atrair Armando Câmara para o evento. Prometeu-me participar, caso sua saúde o permitisse e manteve a promessa de pé até o dia previsto para a conferência. À última hora, coube-me ler e sustentar no plenário o texto que remetera pelas mãos de sua sobrinha Maria Helena. É um dos raros textos autênticos, no qual, sob o título Reflexões sobre a Definição do Valor, ele explicita suas idéias filosóficas.

 

        AS FITAS

 

Foi durante os preparativos da I Semana Internacional de Filosofia que o Pe. Ládusãns deu-me ciência de seu próximo projeto: uma coleção de perfis de pensadores católicos brasileiros. Para meu espanto, incluía entre os trabalhos, em fase final de elaboração, o autoperfil de Armando Câmara. Como a informação foi prestada durante reunião de trabalho, tive de conter-me até seu final para certificar-me do que me parecia impossível: que Armando Câmara estivesse trabalhando na elaboração de seu perfil cultural. As explicações confirmaram minha suspeita, ao mesmo tempo em que me determinaram uma surpresa. Ele se recusara, como eu previa, a escrever sobre si próprio ou mesmo sobre suas idéias, mas aceitara a alternativa de, durante algumas reuniões no solar, expô-las, autorizando fossem elas gravadas, para servirem de base a alguém que as utilizasse na elaboração de seu perfil intelectual. Num encontro com ele mais tarde, em visita a Porto Alegre, tive confirmação do fato. Manifestava-se até muito feliz com a oportunidade de deixar algo escrito, sem ter que escrever nada...

Não participei, portanto, da coleta dos dados que dão conteúdo à segunda parte deste livro. Por isso, para explicar o objetivo e a natureza do trabalho, assim como a forma como foi preparado, tomo de empréstimo alguns trechos do texto escrito por seu coordenador, Aldo Obino, publicado na Revista "Estudos", então dirigida pelo Pe. Antônio Loebmann. O texto original apresentava algumas deficiências gráficas e, por isso, fui obrigado a revisá-lo. De qualquer forma, é uma homenagem que presto, e com grande satisfação, a Aldo Obino, pois foi seu dedicado trabalho que tornou possível dispormos hoje do auto-retrato de Armando Câmara. Além disso, ao que sei, o texto, que ora transcrevo, foi escrito exatamente para servir de prefácio à edição dos diálogos gravados àquela época, o que só não ocorreu por impossibilidade material, como contarei em seguida. Transformo em realidade, dessa forma, a nobre intenção de seu autor. O texto preenche, por outro lado, uma lacuna que poderia ser observada em meu trabalho: a falta de dados biográficos de Armando Câmara relativamente fatos e circunstâncias que não testemunhei.

Pouco tempo depois da morte de Armando Câmara, o Pe. Ládusãns entregou-me as fitas nas quais estavam gravados os diálogos filosóficos que tiveram lugar no solar. Repetia-se o problema das au­las ria Faculdade de Direito: ninguém conseguia transpor seu conteúdo para a letra impressa. Datilógrafos e taquígrafos haviam desistido, em razão da velocidade das exposições, da peculiaridade dos temas, das formas pessoais de expressão, assim como da riqueza do vocabulário, desconhecido para os encarregados da missão. Acima de tudo, a qualidade técnica da gravação deixava muito a desejar.

Tentei assumir a tarefa, mas, naquele momento, fracassei também. A morte dele era muito recente para enfrentar a impressão de escutá-lo, como que ao vivo, depois de tantos anos... Minha decisão de afastar-me do magistério jurídico fora muito dolorida, e a dedicação às fitas reabriria as chagas em processo de cicatrização. Guardei-as como um souvenir carinhosamente ligado a uma pessoa querida e a uma época muito importante de minha vida.

Motivado, agora, como já narrei, a retornar ao trabalho, e superada a maioria das circunstâncias que o dificultavam, voltei a escutá-las. O tempo fora, porém, terrivelmente impiedoso. A má qualidade técnica inicial se transformara, com o passar dos anos, em péssima qualidade técnica. Segundo me foi explicado, deu-se uma desintegração da matéria, que serve de base à fabricação das fìtas de gravação, de tal forma que aquilo que era pouco audível se transformara em absolutamente inaudível... Minha frustração foi muito grande, e o primeiro ímpeto foi desistir novamente da missão e continuar a mantê-las apenas como souvenir. Felizmente, a tecnologia moderna avançou de maneira extraordinária nesse campo. Procurei um labora­tório especializado que, a partir de um processo de regravações sucessivas, conseguiu recuperá-las em boa parte, devolvendo-me a oportunidade de divulgar seu conteúdo, ao menos parcialmente. Mais da metade foi, por certo, perdida. De determinadas exposições só foi possível recolher alguns fragmentos, e assim mesmo por vezes inaudíveis. Minha tarefa passou a ser, então, equivalente ao de uma costureira que une os pedaços para confeccionar uma veste, como ele gostava de dizer, organizando logicamente as respostas recuperadas, agrupando os trechos esparsos de análises sobre o mesmo tema e, na verdade, montando um diálogo ao revés: dispondo, como dispunha, das respostas, passei a formular (ou reformular) as perguntas a que elas correspondiam, dando vida e seqüência aos diálogos. Fui obriga­do a abandonar a forma de muitas perguntas originais, porque não proporcionariam leitura agradável. Formulei outras e, sempre que possível, aproveitei as que ele mesmo formulava durante sua exposição. Essa era, aliás, uma das características mais curiosas de sua metodologia pedagógica: precisava sempre de um parceiro para debater, ainda que, à falta de outro, esse parceiro tivesse que ser ele mesmo. À falta de um interlocutor que lhe suscitasse perguntas, ele mesmo as formulava, para, em seguida, respondê-las. Essa característica me foi, nesse momento, de extrema valia, porque pude montar um novo diálogo em cima do diálogo perdido e, apesar disso, preservar a autenticidade das anotações. Uma coisa é absolutamente certa: se algumas perguntas não correspondem àquelas que foram originalmente pro­postas, todas as respostas são absolutamente autênticas. Delas eliminei apenas os momentos repetitivos, muito a seu estilo, conseqüência de sua exposição oral e de seus destinatários habituais: os estudantes.

            Não quero apresentar, porém, os diálogos, sem antes concluir minha experiência existencial com Armando Câmara.

 

            A ÚLTIMA VISITA

 

    Poucos meses antes de sua morte, fui visitá-lo no solar. Estava realmente abalado pela enfermidade. Repetindo o gesto de meu pai, nos últimos meses de vida, não fumava mais, ele que sempre acendera um cigarro no outro. Mas já era muito tarde. O câncer, inicialmente localizado no pulmão, avançava inexoravelmente em seu organismo. Recebeu-me no próprio leito, embora tenha procurado conversar naturalmente sobre assuntos do momento. No meio de uma frase cometeu um lapso, trocando uma palavra por outra, como muitas vezes ocorre a qualquer um de nós. Parou e fez-me observar:

- Doutor, o senhor notou meu processo de desintegração mental?

Retruquei-lhe exatamente como acima observei, ou seja, que aquilo ocorria com muita freqüência com qualquer pessoa, ao que rebateu:

- Não, Doutor, o senhor não observou corretamente: isso já é conseqüência de uma lesão cerebral!

E era mesmo...

Recebi a notícia de sua hospitalização, através de um generoso telefonema do Prof. Ruy Cirne Lima. Ao manifestar-lhe minha disposição de viajar para Porto Alegre, dissuadiu-me o Prof. Ruy:

- Não venhas! Tu não o reconhecerias, e e1e não te reconheceria. Guarda contigo a imagem que tens dele até hoje!

Segui o conselho do Prof. Ruy Cirne Lima, mas, como qual­quer pessoa nessas condições, muitas vezes me problematizei se devia mesmo ter seguido. O que eu não poderia imaginar é que, se tivesse ido visitá-lo no hospital, duas pessoas muito queridas não me reconheceriam: ele e o próprio Prof. Ruy que, por trágica ironia da vida, fora internado no mesmo Hospital, no mesmo andar do amigo querido, com um acidente cerebral que inutilizou em definitivo esse outro extraordinário cérebro gaúcho.

 

            MORREU ARMANDO CÂMARA

 

A notícia ribombou em minha consciência e me deixou aturdido. Não que não estivesse preparado para recebê-la: duas experiências recentes de morte de pessoas queridas, somadas a um pré-aviso quase paternal do Prof. Ruy Cirne Lima e a telefonemas do fraternal Lenine Nequete, faziam-me pronto para ela. Mas a morte de um ente querido tem sempre o sabor ácido de uma surpresa, ainda que seja o e.vento mais certo e mais esperado da vida.

Cenas de um filme mudo sucederam-se em minha memória. Pelos idos de 1945, na cidade do Rio Grande, um movimento de massa entregava um ginasiano, pela primeira vez, embora à distância, à contemplação da figura de um pensador cativante. Em 1950, as aulas de Introdução à Ciência do Direito. Em 1951, as de Gnosiologia e Psicologia. Em 1954, a única vez em que participei ativamente de um comício político, para levá-lo ao Senado; no mesmo ano, a aração do paraninfo, formalizando, pela primeira vez, sua tese sobre o conceito de Justiça. Em 1959, as aulas de Filosofia e o inesperadíssimo convite para ser seu assistente na cadeira de Filosofia do Direito. Daí, até 1969, o convívio quase diário. Então a aposentadoria. A separação no espaço. Os encontros esporádicos. A defesa de suas idéias na I Semana Internacional de Filosofia em São Paulo. A última visita e os sintomas da mesma moléstia e das mesmas causas que acabavam de levar meu pai deste mundo... Então a notícia! Como é difícil aceitar que os grandes homens, que são tão poucos, também devam morrer!

Apagaram-se os registros episódicos. Restaram na lembrança as características essenciais.

Um homem para Deus. Não que os demais não o sejam, mas disso tão consciente e a isso tão obediente que sua vontade Ihe servia de claríssimo norte a cada gesto. A fidelidade à Igreja de Cristo foi a única força capaz de frenar-lhe o ímpeto que o movia à peleja. A fé ditava fronteiras nítidas à razão e esta à ação. Dentro de tais limites, um homem de eterna disposição para a pugna.

Por isso, um homem de princípios. Nunca a força das circunstâncias, o poder do fato consumado, nem sequer os vínculos da amizade lhe ofuscaram ou limitaram o pensamento ou traçaram o rumo da ação. Em nome dessa fidelidade aos princípios, a renúncia ao Senado, as críticas lancinantes das autoridades e até a mágoa de amigos muito próximos.

Um humilde apaixonado pela verdade. Por ela fazia comícios; por ela lutava como se estivesse engajado numa guerra de vida ou morte. Também por ela rejeitava a palavra escrita, que lhe frustrava o prosseguimento da análise, que lhe congelava a reflexão, que condenava-lhe a idéia a uma vida empobrecida e fossilizada. O intérprete mais afoito poderia tomar sua fobia à forma escrita como fruto da vaidade. Mas foram o respeito à incessante busca da verdade e a humilde constatação de nossas dificuldades para esse mister que lhe criaram a antipatia pelo papel branco, a caneta ou máquina de escrever.

Por isso mesmo um espírito criador. Descobria sempre novos ângulos de análise dialética, argumentos que nem ele, nem os demais haviam alcançado antes. E, assim, suas aulas foram sempre novas, durante os 13 anos em que fui seu mais assíduo aluno repetente.

Um homem para o magistério, para conduzir os demais, pelas veredas do pensar, à verdade filosófica, como etapa para atingir a Absoluta Verdade, embora repetindo sempre, como Sócrates, que ninguém pode ser mestre de ninguém.

Uma consciência pura, incapaz de presumir desvio na conduta de seus semelhantes e incapaz de suspeitar que a notícia, que lhe traziam, pudesse ser o fruto envenenado de alguma intriga que ignorava. Jamais admitiu, por exemplo, que alunos seus fossem capazes de se valer de meios fraudulentos, que não fossem dedicados estudantes, seriamente interessados pelo desenvolvimento cultural, individual e nacional.

Um homem só, porque foram tão poucos os homens como ele neste mundo. Capaz de dar-se até à morte pelos adoráveis amigos que o adoraram até o fim. Capaz de subordinar seus mais justificados pro­gramas e anseios à paixão filial pela tia de quem foi o esteio, à afeição pelos irmãos e os parentes, mas necessitando viver e morrer só. Ele, a meditação racional e sua oração. Ele e Deus.

Mas um homem rico. Não pelos bens materiais que desprezou totalmente, mas pelas posições sociais a que renunciou e pelos vencimentos mensais apenas suficientes para suas necessidades básicas. Rico pelos bens materiais da comunidade, que guardou e preservou para a História do Brasil; rico pela forma como soube subordinar as riquezas do mundo ao serviço do bem; rico, enfim, dos únicos valores pelos quais se interessou - o bem, a verdade, a justiça. Rico, porque viveu e morreu na riqueza de seu amigo - Deus.

            Ele ficou entre nós, no exemplo de vida íntegra, nas idéias que buscou, no porte da inteligência, na grandeza da alma, na beleza da comunicação. Ele ficou, e ficará para sempre, nas aulas de seus discípulos e nas aulas dos discípulos de seus discípulos...

 


[i] Parte da obra Publicada pela EDIPUCRS, Diálogos no Solar dos Câmara, 1999.