O sentido do conhecimento jurídico.


Jacy de Souza Mendonça é Livre Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ex-professor de Filosofia do Direito do curso de Pós-graduação da PUC-SP.


 

Embora o conhecimento jurídico, como o conhecer em geral, seja essencialmente determinado pela natureza do objeto conhecido, a perspectiva do sujeito que conhece é capaz de influenciar sobre o resultado da experiência, de forma a enriquecê-la ou gravemente empobrecê-la. Além disso, é preciso ter em conta que esta posição gnosiológica pode ser determinada pela consciente opção por um objeto formal depauperado ou por uma forma mais ou menos crítica de estar face às coisas.

Pretensão deste estudo é apontar atitudes básicas frente ao Direito seus méritos e deméritos. E mais, tendo em vista a destinação social da regra jurídica e a influência das condições sociais sobre a perspectiva daqueles aos quais é ela destinada, analisar a intercomunicação e a dinâmica destas atitudes básicas.

Nào foge o Direito à regra dos trés planos do co­nhecer. Seu apreciador pode ficar na precária posição de quem se interessa apenas por fruí-lo no convívio, com um mínimo de penetração em sua realidade cog­nocível e um màximo de vivéncia. Pode, porém, aumen­tando a penetração na faixa de cognoscibilidade, bus­car compreendé-lo sob formas genéricas às quais são redutíveis os fenómenos. E pode, finalmente, perguntar por sua realidade última, seu porquê e sua causa mais profunda, totalmente desinteressado do modo como ele se põe na realidade social. São as formas empírica, cien­tífica e filosófica de conhecer o Direito.

Não há ordem lógica ou cronológica entre os três planos; há, sim, gradação valorativa. Poder-se-ia, pois, iniciar a reflexão por qualquer uma das três. A tentação metodológica de seguir do simples ao complexo recomendaria, talvez, partir do conhecimento empírico do Direito para, atravessando a ciência jurídica, chegar, afinal, à forma filosófica de apreendê-lo. Move-nos, porém, a consciência de que o conhecer jurídico, mesmo quando atinge a neutralidade absoluta do filosofar, está voltado para o convívio humano e se destina, em última análise, a influenciá-lo, a transformá-lo. Esta observação faz com que se esquematize a pesquisa, conduzindo-a da forma pura do filosofar jurídico, peculiar a poucos, à sua vivência, a que todos estão sujeitos.

 

1. O CONHECIMENTO FILOSÓFICO DO DIREITO

 

Mesmo porque a análise inclui perquirição em torno da ciência jurídica, em sentido estrito, filosofia é aqui tomada apenas sob o específico significado aristotélico de conhecimento do ser enquanto ser.

Na experiência filosófica, dá-se o Direito como redutível à estrutura última de uma realidade obrigatória. A aparente autonomia individual com relação à conduta social limita-se pela autonomia do outro; o conflito das liberdades implica na limitação da própria liberdade. E o homem, que tudo poderia, não só não pode tudo, como está ainda obrigado a determinadas formas de comportar-se, como condição da coexistência, de que essencialmente depende. É o fenômeno existencial do obrigatório.

E este obrigatório não é eleição gratuita de uma entre múltiplas modalidades de ação, pois, neste caso, ele não existiria, mas sim o puro arbítrio de alguém (embora detentor ocasional do poder); e arbítrio inobjetivável no plano do filosofar jurídico. O obrigatório, ao invés de opção livre de alguém, é forma imperativa do agir que emerge da natureza mesma do ser que age. O homem não pode, em sociedade, desrespeitar regras que estruturam seu próprio ser e a sociedade que dele decorre, pena de autodestruir-se e destruí-la. Como 0 próprio ser que convive, a sociedade humana não é artificial ou artificialmente estruturada, mas participa da dimensão necessária da natureza humana e, como tal, sujeita-se a uma disciplina essencial.

O obrigatório, no convívio, expressa limitação do homem. A vontade humana, embora por natureza se apresente como indeterminaçào, està, do ponto de vista existencial, limitada por impedimentos. O exercício do querer não se faz incondicionalmente; ao contrário, é prisioneiro, está frenado por restrições.

Já a condição biológica cria obstáculos intransponíveis à vontade humana. Não pode, por exemplo, contra sua temporalidade, viver o passado ou o futuro. . . muito menos o eterno. Não pode, contra sua espacialidade, estar em outro lugar ou em mais de um ao mesmo tempo. São suas características de ser concreto, limitando a tensão do querer, gerando formas elementares do obrigatório. E como o homem é também ser que pensa, tem, na maravilhosa operação do conhecer, sede da onisciência: quer conhecer absolutamente o próprio Absoluto. Mas outra vez a consciência de limite o obriga: pouco conhece de muito pouco. Além disso, ser concreto e pensante, tem consciência de estar face ao outro sem neutralidade.

E chegando ao tema que nos ocupa, "ego" e "alter" se interpenetram, ambos se constituem no existir, são sócios na vida. Por isso, o querer e o fazer de um é limitado pelo do outro; limitam-se as liberdades, coordenam-se os arbítrios, única forma de os homens, como sócios, realizarem em comum seus fins comuns.

A experiência existencial do homem é experiência de limitação objetiva, extrínseca, de uma energia interior aparentemente indeterminada e autônoma - a vontade. É a experiência do obrigatório do dever, no ser.

Há, pois, formas de comportamento em si mesmo obrigatórias ou proibidas. Esta a redução máxima do fenômeno jurídico. A partir daí começa a Filosofia do Direito. O momento do filosofar ético-jurídico é aquele em que o espírito, face a esta realidade, pergunta pela explicação última do obrigatório essencial: por que uma forma do agir é em si mesma imperada e outra vedada?

Os primeiros caminhos da resposta estão já na experiência da forma de conduta como limitação do querer humano não gratuita mas decorrente da própria natureza do homem; na experiência da ação como obediente a determinações que correspondem à fidelidade do ser que age aos fins de sua própria natureza.

E só pode fundar-se no ser a explicação última do obrigatório. Seria mesmo contraditório pretender uma explicação do que é (e o dever é), em nível do não ser, do nada. Toda filosofia jurídica é, querendo ou não, conscientemente ou não, uma ontologia. A disputa histórica será relativa apenas à área ontológica de inserção do dever: no plano puro do real, do ideal, ou numa zona híbrida.

Situado o dever jurídico no plano do ser, é preciso ainda defini-lo mais precisamente: trata-se de uma ontologia, propriamente, ou, mais especificamente, de uma antropologia? No infra-humano o agir se processa de tal forma determinado que não é possível distinguir ser e dever ser: todas as coisas são o que devem ser e não podem ser o que não devem ser; não havendo lugar para a liberdade, é impensável a ação obrigatória. No supra-humano, em que pese o drama intelectual da escolástica franciscana, repugna admitir possa Deus fazer o mal. O Absoluto não é livre para o mal; só o homem pode apreender racionalmente o bem como fim possível e optar pelo mal como fim real. Por isso, só dele se pode dizer que deve, que está obrigado. A conclusão é que a filosofia do obrigatório deve dirigir-se à antropologia.

Mas se a antropologia é o ponto de radiação da normalidade jurídica, não menos verdade é que as regras fundamentais da natureza humana não decorrem de dimensão do homem enquanto homem, mas do homem enquanto ser. O justo, a que está obrigado 0 homem, deve ser realizado não por ser ele homem, mas por ser. Todo ser busca o bem de seu ser, busca seu acabamento no ser, busca sua perfeição ôntica. Fazer o bem é, assim, imperativo do homem não porque homem mas porque ser. A antropologia em que se assenta o obrigatório é, na verdade, uma ontologia do homem. Esta busca do bem no ser, quando o ser que

busca é o homem, racional e livre, e quando o bem buscado é a Justiça ("a conformidade de uma relaçào inter-pessoal com os fins da vida enquanto a vida é convívio" - na definição do Prof. A. CAMARA), propóe ao pensamento a problemàtica axiológica do Direito.

O dever resulta de um conflito existencial entre ser e nada; expressa a distância que vai do contingente, precário, inconcluso, imperfeito, no ser do ser humano, a seu acabamento, sua perfeição, sua plenitude de ser. É expressão de carência a plenificar, de pobreza a remediar, de falta no ser, de nada no ser. O infra-humano nada deve exatamente porque nada mais pode ser além da finitude que é; o Absoluto nada deve porque nada mais pode ser além da plenitude que é. Só o homem é ser-que-deve-ser, porque só ele pode ser mais do que é (ser-que-pode-ser), pode enriquecer-se ontologicamente; partindo de um estado decaído, pode buscar o Absoluto. E atinge-se, desta forma, a reflexão teológica sobre o Direito. Se a causa última do obrigatório não é o caótico do arbítrio humano, e se a natureza humana, que pode explicá-lo, não se explica em si mesma, é preciso recorrer a um poder superior ao homem para buscar esta explicação. As idéias de criação e Criador serão, pois, naturalmente, passos necessários do pensamento. E não será na aceitação de uma vontade arbitrária, mesmo do Absoluto que irá satisfazer-se o espírito. A derradeira resposta estará numa teologia jurídica que parta de um Deus que não cria o obrigatório para o homem como expressão lúdica de seu poder e seu querer infinitos, mas que o cria na medida em que a natureza criada deve realizar-se necessariamente segundo os rumos da criação, à semelhança da própria natureza in­criada, cujo dinamismo se dá, também, na fidelidade a si própria, a seus fins imanentes.

A objetivação filosófica máxima do Direito encontra, portanto, a natureza humana (racional, livre e social) estruturada na tendência à sua plenitude pela concreção de suas próprias virtualidades no absoluto de ser. Um ser que pode o indeterminável mas deve seguir os rumos determinados de seu ser: um ser que deve buscar-se mas pode autodestruir-se. E, na sucessão do raciocínio, chegamos à derradeira       explicação do fenômeno jurídico no plano do ser: um imperativo que se revela ao ser humano como itinerário através do qual, buscando-se e buscando seus fins naturais e últimos, o homem valora e se valoriza, chegando ao absoluto de ser. Antropologia, Ontologia, Axiologia e Teologia Jurídica são os termos finais possíveis desta investigação. Mas a operação que aí chega sequer se inicia sem uma preliminar e radical auto-crítica, na qual não só o pensamento antropológico, ontológico, axiológico ou teológico jurídico são postos em cheque, mas o próprio ato de pensar. É válido pensar o Direito? É possível, a partir da experiência mutável do fenômeno jurídico, chegar a uma idéia objetiva e universal de Direito? Se o é, qual o caminho correto para atingi-la: partir da experiência, ficar na experiência ou enclausurar-se nos frutos do processo racional? Apreendê-lo diretamente em sua essência ou através do processo lógico-discursivo? E, afinal, haverá sinal bastante que assegure ao pensamento humano ter apreendido o essencial do Direito; ou a dúvida será o resultado irremediável desta operação? É a problemática gnosiológica do Direito. Sem partir da solução destas dificuldades, sem que o pensamento que pensa o direito pense primeiro a si mesmo, é impossível uma tomada de posição radical sobre a essência do jurídico. Quando o espírito humano investiga em torno do fenômeno do obrigatório jurídico chega, assim, a uma resposta lógica sobre o Direito, fundada numa descoberta gnosiológica; e o encontra como o dever, o comportamento valioso de um ser. Certo, as várias expressões históricas da Filosofia Jurídica não seguem nem repetem este itinerário. As posições gnosiológicas dos juristas são em regra implícitas, não criticadas nem reveladas. O humanismo jurídico só muito recentemente se tornou tema expresso dos filósofos do Direito; a axiologia jurídica, a tomada de consciência de que o Direito é Justiça, a Justiça é valor e, como tal, deve ser estudada, embora presente à consciência dos filósofos mais antigos, como disciplina filo­sófico-jurídica só há pouco surge na história do Direito, e começa a dar seus primeiros passos. Relativamente poucos fazem pouca coisa no plano da Teologia do Direito, meditação reservada quase que exclusivamente aos meios religiosos, às escolas de formação de ministros do culto, como fundamentação racional auxiliar para compreender a revelação da normatividade ética; muito excepcionalmente a teonomia surge no plano dos estudiosos do Direito como explicação do fenômeno jurídico em si mesmo. A História da Filosofia do Direito praticamente a identifica com uma teorização do Direito Natural; este o tema insistentemente explorado: a radicação da norma jurídica na natureza, idéia que apaixonava já o classicismo greco-romano. Mesmo aí, busca-se, a GRÓCIO, uma explicação natural última do Direito que não dependa, ou pareça não depender do recurso às idéias do Criador e criação, entendendo somente assim haver a Filosofia pura, não comprome­tida com os riscos afetivos ou religiosos que a Teologia ou a Teodicéia oferecem. De qualquer forma, objetivação do obrigatório jurídico em plano filosófico, sem explorar-lhe as últimas camadas inteligíveis.

Na verdade, escopo deste trabalho não é uma síntese das filosofias jurídicas mas um esquema das dimensões possíveis do objeto do filosofar jurídico. E não um esquema dissecado e morto; um resultado lógico de possibilidades. Os filósofos do Direito e as filosofias históricas detêm-se sobre algum ou alguns destes aspectos ou sobre algum aspecto destes aspectos. De qualquer forma, estão jogados,no filosofar, na busca de uma fundamentação racional ultima para o Direito; na procura de uma síntese essencial que o explique.

 

2. O CONHECIMENTO CIENTÍFICO DO DIREITO

 

O pensamento humano toma o Direito como objetivo para apreciá-lo em busca de uma síntese explicativa universal e crítica de sua estrutura valiosa essencial. É a análise da Justiça como valor: o estudo da adequação da conduta humana aos fins últimos do convívio. É a Filosofia do Direito.

Impulsionado, porém, pela mesma sede natural de interpretar os fenômenos sensíveis, bem como pelo interesse de capacitar-se para dirigi-los e, desta forma, resolver os problemas da vida prática, o homem apreende também o Direito como fenômeno e procura seu significado experimentalmente, em plano universalizante, de forma metódica, sistemática, e crítica, sem perguntar por sua razão última de ser. É a ciência do Direito. Seu objeto é a compreensão dos fenômenos jurídicos visando a dirigi-los, enquanto fenômenos.

A estrutura do obrigatório jurídico revela-o, então, como uma norma regulando uma conduta social. Conforme se enfoque este objeto a partir da norma ou a partir da conduta, surgirão as dimensões cientifizáveis do Direito. O objeto será, portanto, a norma (enquanto reguladora da conduta social) ou a conduta social (enquanto regulada pela norma).

As disciplinas científico-jurídicas que tomam a norma como objeto de conhecimento, ou as posições face à ciência do Direito que a reduzem ao estudo da normalidade, podem a.inda subdividir-se, porque a norma pode ser vista em sua dimensão ideal ou em sua dimensão real. Do ponto de vista ideal, o Direito é um sistema fechado, como que uma geometria, presidida pelos princípios teóricos (válidos para a lógica geral), pelos pri­meiros princípios da ordem prática, bem como por leis específicas a ele imanentes, adequadas à sua natureza. O pensamento humano volta-se, então, para esta rea­lidade e procura desvendar postulados, axiomas e corolários a ela inerentes, formando, como resultado, ou uma pura lógica jurídica (estrutura coerente de pro­posições normativas), ou um conjunto dogmàtico de preceitos. E tudo isso objetivando apenas interpretar a norma, como fenómeno jurídico, para que ela se torne adequadamente aplicàvel e, assim, oriente o convívio.

Mas, se a norma jurídica possui esta carga de racionalidade que a aproxima ou identifica a um sistema lógico-matemático, na verdade é ela também um fenômeno que apresenta dimensão de dura realidade. Surge num lugar e num momento histórico, emergindo da própria natureza humana, sugerida pelas formas costumeiras da coexistência ou imposta pelos detentores ocasionais do poder. A primeira hipótese, porque trate de problema relativo à essência que o fenômeno revela, desinteressa à perspectiva científico-jurídica. O estudo da gênese positiva da norma jurídica lhe é, porém, importante. Como se opera o surgimento da norma, como se dá sua vigência (a aceitação da maioria ou a imposição da minoria)? É o estudo dinâmico da regra jurídica - sua origem e aplicação.

Sob esta perspectiva, a Teoria Geral do Direito é o conjunto de conhecimentos relativos à norma ínsita no fenômeno do obrigatório jurídico. Tema grave para o homem que não pode emancipar-se da pressão desta norma; que a recebe como um dado, contra o qual é impotente; mas que, apesar disso, deve viver de acordo com ela e, para isso, saber interpretá-la.

Quando se tome, porém, o mesmo fenômeno, enfocado não a partir da normatividade mas a partir da conduta normatizada, outras são as dimensões da análise, outras as conquistas culturais recolhidas pelo pensamento. Em realidade, o fenômeno experimentável do jurídico é também uma forma especial de conduta social. Os homens convivem e, nesta convivência, praticam açóes aplaudidas, toleradas ou proibidas. É necessário voltar o pensamento para estas formas da ação social. O tema base será, então, a solidariedade; a tecitura do permitido e do obrigatório que possibilita e organiza o convívio o surgimento espontâneo destas regras através dos costumes sociais ou o surgimento cogente através de encarregados da edição das regras; o esquema de forças que pressionam os órgãos encarregados de dizer a regra aplicável; as causas e conseqüências sociais da aplicação da regra ao caso concreto e de sua imposição coativa aos que a rejeitam. É a Sociologia Jurídica.

Mas o fenômeno jurídico não é estático; não pode ser apreciado apenas como num corte que apanhe sua revelação num determinado lugar, numa época determinada. Ele flui no tempo e se permeia em lugares distintos. E numa sucessão, sem saltos. Há um itinerário perceptível da forma como se sucedem as normas jurídicas relativas a determinada forma de comportamento social. As modificações são lentas e gradativas: processam-se movidas por uma sede de aperfeiçoamento, contidas sob o peso da verdade que a tradição acumulou. O homem não,o se satisfaz com a norma outorgada pelo passado mas não cai na tentação de rasgá-la para recomeçar tudo de novo. Na busca da perfeição da regra, faz a História do Direito. Necessário, pois, apreciar a sucessão no fenômeno jurídico e as regras que a presidem, a fim de compreender o passado, através dele melhor compreender o presente e projetar as linhas que empurram para o futuro.

Tomando como objeto de contemplação quer a norma que rege a conduta, quer a conduta regida pela norma, limitado ao campo meramente científico, o jurista chega a um resultado necessariamente não descritivo, mas normativo. Coma esta ciência tem por objeto de indagação uma direção de comportamento, isto é, como seu objeto é normativo, não poderá, ainda que metodologicamente a isso se predisponha, concluir numa atitude de neutralidade, mera.mente descritiva. Resul­tado do estudo do que é, neste caso, serà sempre o como deve ser. Inutilmente se debatem os cientistas do direito em torno da natureza de sua ciéncia. Se nào intencionalmente, metodologicamente, normativa, a ciéncia do Direito, descrevendo o normativo, termina tendo sempre, de alguma forma, natureza também nor­mativa.

 

3. O CONHECIMENTO EMPÍRICO DO DIREITO

 

Não só o filósofo toma o fenômeno jurídico como objeto de contemplação para perquirir sobre sua natureza última. Nem só o cientista está interessado em conhecer os porquês e os para-quês da conduta normatizada. O homem vulgar também conhece o Direito. Melhor dizendo, todos os homens experimentam necessariamente o Direito, como condição de sobrevivência, ainda que não o façam intencionalmente sob o ângulo visual filosófico-científico.

E, note-se, se o Direito pç ser captado por alguns sob o ponto de vista filosófico-científico, deve ser conhecido e vivido empiricamente por todos. Ele não se dentina apenas à contemplação desinteressada ou ma,is ou menos disponível de alguns. Destina-se, sim, e compulsoriamente, ao conhecimento de todos, à obediência de todos. Este, aliás, o princípio essencial de qualquer ordenamento jurídico positivo: ninguém se escusa sob a alegação de desconhecimento da lei; presume-se que todos a conheçam,

Todos aceitam o Direito. Aceitam-no com maior ou menor grau de consciência, com maior ou menor intensidade de disposição volitiva. Mas aceitam-no. E, se não quiseram aceitá-lo, serão a isso compelidos.

Mas para que se deve aceita.r o Direito? Para viver, para conviver. O Direito é instrumento necessário, indispensável à convivência e, conseqüentemente, à existência individual. Ou a aceitação ou o caos. Porque o homem não vive mas convive e conviver é obedecer a um mínimo de regras disciplinadoras da existência em sociedade. Assim a experiência da vida ensina a todos, sem mestres nem pesquisadores, que é necessário aceitar o Direito como condição de sobrevivência. E como todos querem viver, sujeitando-se, mais ou menos, a ele.

Há uma rudimentar forma de apreensão da existência das regras destinadas a todos para a preservação do convívio. Chame-se a isso, se se quiser, com menos propriedade, de sentimento jurídico individual ou coletivo, ou de intuição do justo e do injusto. É o mínimo de conhecimento jurídico que a experiência da vida faculta a todos. O agrupamento se estrutura graças a uma tomada de consciência de fins a atingir; e estes fins, visualizados pelos indivíduos que compõem o grupo, revelam imediatamente os caminhos e as regras a obedecer, como condição de seu atingimento e, conseqüentemente, de preservação do próprio grupo. A visão mais ou menos vaga deste regramento é já a forma primária do conhecimento jurídico.

Também a história participa da pedagogia social do Direito. Se, desde épocas imemoriais, os integrantes de um grupo procederam de determinada forma como se isso fosse necessário à realização do grupo, a duração deste costume e a consecução dos fins do grupo no passado dão à regra obedecida um índice de validade. É a tradição como reveladora do Direito.

Finalmente, contribui a força neste magistério. Os encarregados de dirigir o grupo que convive, no desempenho de sua missão, compelem todos a obedecer à regra jurídica. E, nos limites extremos da indisciplina, medidas também extremas são tomadas, a fim de que todos saibam o que é permitido e o que está proibido; e, sabendo ou não, para que todos respeitem as regras jurídicas e as cumpram.

Assim, querendo ou não, todos aceitam o Direito, para poder viver. Todos seguem a regra jurídica porque percebem sua necessidade, condicionante da própria sobrevivência ou, quando espontaneamente não a seguem, sofrem a pressão da tradição ou do governante.

E todos sabem o que é Direito.

Para o homem em geral, Direito é a lei, o decreto, a circular e a portaria que se lhe impõem, dos quais ouve falar em forma vaga e em circunstâncias especiais, que deve obedecer a,inda que nunca os tenha lido nem saiba onde se encontrem. Se desconhece, porém, seu conteúdo exato, preciso, verdade é que há em sua consciência, à plena luz da evidência, um sistema de princípios fundamentais que disciplinam o agir. A partir do "faz o bem e evita o mal", totalmente evidente à sua consciência, estrutura-se, num sistema lógico de conseqüências, verdadeiro código jurídico, paradigma ideal de todos os códigos positivos.

E assim vive a consciência popular. Premida entre a plena evidência dos primeiros princípios da ordem fática, da qual participa em comum com cientistas e filósofos do Direito, e a impressão de relativismo que o Direito Positivo lhe deixa: leis, decretos, circulares, etc., na sua mutabilidade permanente, oferecem-se, aos olhos não críticos e pouco analíticos do homem vulgar, como a mera vontade transitória do poderoso. O justo e o injusto, ao contrário, são intimamente vividos e experimentados na plenitude da evidência. Tão forte esta consciência, que todos falam de Direito; como se o tivessem analisado científica ou filosoficamente; todos praticam atos jurídicos diários sem necessidade de ajuda de técnicos a não ser em casos extremos; todos discutem, e com resultados até positivos, o trabalho do legislador, do julgador e do policial, E, mais que isso, são mesmo oficialmente chamados a opinar às vezes em tais assuntos, nas horas definitivas dos plebiscitos de cunho jurídico-constitucional, na participação em órgãos legi­ferantes ou em tribunais classistas ou de jurados. E ninguém põe em dúvida que esteja apto para tais misteres. Ao contrário, todos estão certos de sua capacidade para dizer o que de Direito em tais situações.

O que se passa, em verdade, é que o homem vulgar é compelido a submeter-se a regras jurídicas que desconhece; mas esta submissão se faz possível porque tais leis espelham normas jurídico-naturais apreensíveis espontaneamente por sua razào. O filósofo explora a idéia jus-naturalística, mas o homem vulgar a vive com intensidade igual à dele. E assim o aparente relativismo jurídico do homem vulgar se transforma no mais tenso dogmatismo quando està face à regra natural. Especial­mente nas situaçóes jurídicas limites: quando a conduta nobre é enaltecida ou se lhe impóe o sofrimento de uma injustiça. É o injustiçado quem vive a experiéncia mà­xima do Direito. Podem todos se mancomunarem contra ele, podem todos cair no mesmo erro e à unanimidade o condenarem injustamente. É exatamente aí que se manifestarà em toda plenitude sua capacidade de apre­ender o Direito imutàvel e eterno que o protege, inde­pendentemente do poder humano; o mesmo Direito que a ele sempre se apresentou como paradigma dos siste­mas jurídicos positivos e que lhe possibilitou obedecer leis positivas que nunca lhe ensinaram. - Só a injustiça envolver o grupo político outra não será também a reação: o grupo, amassado pela vontade e prepotência do detentor do poder, reagirá sempre no momento em que a força tocar os limites do Direito ideal de sua consciência. Neste momento, as regras que pareciam meros objetos de contemplação e tranqüla fonte de julgamento se transformam em bandeira de luta e o homem vulgar vai ao sacrifício da própria vida, na de­fesa de seus intangíveis valores naturais. As revoluções de escravos e de escravizados tiver am sempre como su­porte esta consciência espontânea do homem vulgar de ser titular de direitos naturais.

Em suma, o conhecimento empírico do Direito é forma rudimentar de apreensão das normas positivas, ditada pelas necessidades do existir, sem método, sem sistema, sem poder crítico, mas enriquecida pela participação da consciência na evidência dos primeiros princípios da ordem prática, que torna o homem vulgar apto a, validamente, aproximar-se do núcleo essencial do Direito e daí extra.ir os rumos adequados do agir e do reagir.

 

4. CONHECIMENTO JURÍDICO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

 

O conhecimento jurídico é conhecimento para vivência, é um saber-fazer, um conhecimento teórico-prá­tico. Filósofos e cientistas do Direito não estão voltados à contemplação pura de um objeto neutro mas, porque valoram a conduta social, têm como tarefa transformá-la. Esta transformação, em seus momentos críticos, faz­-se pela coação; mas forma ideal de obtê-la é a educação de todos, para que co-existam na busca do bem comum. Como apenas pequena minoria forma o grupo dos filósofos e cientistas, pode-se dizer que o conhecimento jurídico está voltado, destinado à maioria, que o aprende, em princípio, só empiricamente. Elevado, embora, aos níveis transcendentais do filosofar, ou à universalização científica, o Direito é, na verdade, objeto do viver quotidiano do homem vulgar.

O que se observa, porém, é uma constante dissin­tonia entre as idéias de filósofos e cientistas e as opiniões que do Direito tem a maioria.

A idéia filosófica de um Direito essencialmente universal e imutável, por exemplo, opõe, entre nós, a massa, a concepção de que o Direito é absolutamente relativo às condições geográficas e históricas. As idéias cientí­fico-jurídicas de que, por exemplo, a premeditação em nada agrava a conduta criminosa ou de que o flagrante do roubo domiciliar noturno ou o flagrante do adultério não justificam a morte do ladrão ou do adúltero, opõe-se, na consciência popular, opinião exatamente contrária.

Mas é necessário que as idéias sobre Direito deixem os átrios universitários onde são afagadas pela dedicação de docente e estudiosos, para formarem e transformarem a consciência popular. É necessário que as conquistas da Ciéncia Jurídica abandonem tratados e processos e sirvam de temário de educação popular.

Isso, na verdade, se dá, "nolens volens". O destino de todas as idéias é transformar o mundo; por mais abstrata que possa parecer, a idéia é semente de transformação social. Toda filosofia é revolução em potência.

Mas é preciso registrar que a massa que convive tem ideologias estratificadas, consolidadas pela força da tradição, com validade aparentemente comprovada pela reiteração. - A idéia nova, por mais evidente que seja, encontra, então, este obstáculo à fecundação da conduta. É preciso plantá-la com dedicação e cultivá-la com esmero. De outra parte, as ideologias, que embebem a massa, são forças que condicionam não só o pensamento dos que a integram mas até o pensamento técnico, científico e filosófico. Não é fácil romper esquemas consolidados porque não é fácil transformar absolutamente perspectivas intelectuais nem ser ouvido quando se fala coisas absolutamente novas. As idéias populares são, realmente, forças que abrigam o passado no presente e impedem que o futuro se faça ao arrepio dos costumes. É preciso, então, transformar as ideologias por um processo pertinaz de educação.

Disso têm nítida consciência, normalmente, os políticos. O pensamento repelido uma vez é repetido incessantemente e vai aos poucos criando ouvintes, conquistando adeptos. Num determinado momento o número deste cresce o suficiente para se impor à consciência da maioria e o resultado é que a idéia inicialmente repelida passa a opor-se à sua contrária, antes predominante. A partir daí, a tarefa da oposição será penosa, porque será novamente necessário enfrentar o poder estático da aceitação popular. Ao contrário, a massa irá fecundar e gerar novos líderes que repetirão a idéia por ela abrigada. Porque o líder é fruto do grupo, é membro do grupo e cultiva a simpatia do grupo. Trágica, por isso, a sociedade em que o poder se estrutura sobre idéias contrárias à opinião da massa. As idéias populares contidas, abafadas, são utopias que um dia explodem ao estímulo de qualquer estopim de uma liderança com ela sintonizada. Este fenômeno não interessa, porém, exclusivamente à política. Também ao Direito. O jurista, filósofo ou cientista, na elaboração, interpretação e aplicação da lei, cria padrões de conduta, "standards" de vida. Se estes afinam com os padrões já aceitos pela massa, sua eficácia será facilitada pela aceitação tácita e imediata. Se porém, estes "standards" violentarem as concepções populares, a vigência da lei será tumultuada pelos processos da inobservância e até da violência. Não podem, pois, filósofos e cientistas do Direito, ficar alienados ante o pensamento jurídico popular, ante o conhecimento empírico do Direito. É preciso tê-lo presente, a fim de, na medida do possível, valer-se das categorias já admitidas e com elas estruturar o sistema jurídico; ou, se for o caso, analisá-las para transformá-las. A direção do conhecimento jurídico parte, assim, da visão abstrata do filósofo mas volta-se para a experiência vulgar. Mas as conquistas empírica,s sobre o Direito estão também voltadas em direção aos pensadores do Direito, objetivando, em última análise, influenciá-los, modelar-lhes o pensamento e, assim, construir a lei e a sentença.

 

5. CONCLUSÃO

 

Pelo conhecimento filosófico e científico do Direito busca o pensamento a apreensão de idéia que, fiel à natureza, deve ser, ao mesmo tempo, modeladora da consciência popular e, deste modo, retificadora do convívio.

A transformação do mundo pelo Direito não se faz pela força que constrange a ação mas pela idéia que modela a consciência popular e, assim, a conquista para a ação justa.

 

 


 Apresentado à primeira Semana Internacional de Filosofia, promovida pela Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos (São Paulo, 16 a 22 de julho de 1972).- Publicado em Anais (1974) da Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos (Humanismo Pluridimensional - pag. 398) ; em Estudos Jurídicos (S. Leopoldo, RS, vol. II, n.° 4, 1972) ; em Justitia (São Paulo, vol. 80, 1973)..