Diálogos


O VALOR

 

- Ainda não consegui descobrir quando e por que o senhor começou a se interessar pela Filosofia dos Valores?

- Isso é coisa recente. Muito contribuiu para isso a experiência política e social. Fui, no Senado, testemunha e depois agente daquele tumulto, daquela situação em que parecia que toda a História do Brasil ia sucumbir, imagem que, aliás, usei no discurso de renúncia: dinamitam-se os fundamentos do Corcovado... Queria dizer que a civilização brasileira estava sendo dinamitada. Foi essa experiência política, essa visão do desmoronamento dos fundamentos da civilização nacional, que me levou à necessidade de acabar com o relativismo ético dentro da política. A política estava sendo suicida, por­que estava fundada numa forma errada de conceituar o Valor.

Os fatos testemunham essa afirmação. Saí do Senado em 1956 e já em 1957 apresentava a teoria do Valor, na Faculdade de Filosofia. Em 1958, iniciei a aplicação da teoria do Valor, na Faculdade de Direito, constituindo uma Axiologia jurídica, uma teoria do Valor jurídico e a concepção sobre o Valor Justiça.

                        - E seria possível também sintetizar neste diálogo as idéias que o senhor sustentou, no exercício do magistério, relativamente à Filosofia do Valor?

 

- Vamos tentar. E vamos tentar, começando pelo problema das relações do Valor face ao ser. Depois de caracterizar essas posições é que faço minha opção, assumo uma atitude, e, dentro dessa atitude, começo um trabalho de construção conceitual do Valor.

Não vou seguir o roteiro habitual nas aulas, de começar descrevendo como os valores se caracterizam, do ponto de vista de uma fenomenologia do Valor presente à consciência. Nem vou falar sobre a pluralidade do Valor, a absoluteidade do Valor e outras coisas iguais. São dados elementares que, por isso mesmo, acho dispensáveis aqui.

Já o estudo das posições possíveis do pensamento, face ao problema do Valor no seu relacionamento com o ser, considero fundamental, porque tenho que estar numa dessas posições e é dentro de uma delas que vou construir a minha visão pessoal.

Renuncio, pois, pelo menos agora, a toques no problema axiológico que atenderiam a exigências puramente didáticas, pedagógicas, e a uma fenomenologia do Valor na consciência, sem emitir julgamento do Valor, pois acho dispensável, porque não estou fazendo um curso sobre o Valor. Estou lembrando algo que foi objeto de um curso e não fazendo curso.

Abrindo mão dessa introdução, vou começar dizendo que, face ao problema fundamental da Axiologia, o problema das relações que o Valor guarda com o ser, eu indicaria três formas fundamentais de relacionar o Valor com o ser.

Numa primeira, encontramos uma tentativa de redução do Valor ao ser. É uma posição axiológica na qual fica-se contemplando o Valor apenas como fenômeno psicológico e suas repercussões no quadro social. Faz-se a análise fenomenológica dos aspectos psicológicos e sociológicos do Valor. Tenta-se uma redução do Valor ao ser, do dever-ser ao ser, do Valor ao fato. Geralmente estão nessa posição os pensadores que assumem uma posição materialista, atéia, positivista, mas, mesmo em certas correntes do existencialismo, encontramos a tendência de absorção do Valor no fato.

Há uma segunda posição assumida, para indicar a figura mais destacada, por Nicolai Hartmann. Ele opõe Valor e ser, para dar ao Valor o caráter de realidade ou localização semelhante ao mundo das idéias de Platão. Valor seria algo transcendente, do qual nada poderíamos dizer, nem a favor nem contra, porque nenhuma experiência seria possível realizar, pois ele está oposto ao ser. Se o objeto do pensamento é pensar o ser, para pensar o Valor devemos nos referir ao ser, mas, colocando-se o Valor em oposição ao ser, onde vamos encontrá-lo, em que mundo? E quais os caminhos de acesso a esse mundo? Se ele dissesse que era uma ontologia particular, uma região particular da ontologia, ainda bem. Mas ele não situa o Valor na ontologia. Acha que o Valor está em oposição ao ser. Onde está, como está, que figura tem, que relacionamento poderia ter com este mundo que nós conhecemos, para pensar e experimentar? Sobre isso nada se diz.

E há a terceira posição que, sem identificar Valor e ser e sem           opor o Valor ao ser, procura relacioná-lo com o ser, nele descobrindo uma posição de ser. O Valor seria uma posição do ser, estaria vinculado fundamental e essencialmente ao ser. O Valor seria ser, estaria vinculado fundamental e essencialmente ao ser. O Valor seria ser, mas ser em determinada posição. Que posição? Esse é o objeto de toda a análise e de toda a pesquisa relativamente a uma Axiologia baseada numa ontologia.

- Certamente, para os fins desse trabalho, interessa especial­, mente essa terceira posição, que é a sua. O senhor poderia sintetizá-la?

- Essa tentativa deveria começar, e assim ela começou, por uma análise gnosiológica do Valor. Como ele é ser, como as vias de acesso ao mundo dos Valores são as mesmas vias de acesso ao mundo do ser, devemos fazer um exame gnosiológico do problema. Na Gnosiologia do Valor, analisei diferentes posições, principalmente a de Max Scheler, a de Lavelle e a do Hessen, que toma uma posição que se aproxima, mas não é rigorosamente identificável com a minha.

Devo afirmar de logo: descobre-se o Valor. O Valor é descoberto. Essa descoberta é racional. Descobre-se o Valor pela razão. Mas a inteligibilidade profunda do Valor está condicionada a uma organização total das forças que integram a personalidade. Ele não é conhecido nas suas dimensões totais e muito menos exaurido na sua figura íntegra por mera contemplação racional do conceito elabora­do.

- Os axiólogos modernos tendem a explicar a apreensão dos Valores pela intuição emocional, enquanto o senhor está sustentando a apreensão racional dos Valores. O senhor vê algum papel importante do sentimento em relação ao Valor?

- O conceito está fixado em base metafísica e racional, mas a vivência do Valor, pela participação da liberdade e pela participação de todo o mundo afetivo e emocional do homem, são elementos fundamentais do conhecimento experimental o Valor. A contemplação racional está longe de esgotar todo o misterioso conteúdo dessa realidade. Essa descoberta, enquanto apreensão e fruição da liberdade, da vontade livre, objeto da intuição afetiva emocional, é algo que se deve acrescentar no conhecimento do Valor.

Quando terminamos a análise do conceito de Valor, dentro dos elementos, que integram a sua estrutura, começamos a análise do Valor vivencial, do Valor experimental, nessa dupla participação da vida emocional do homem e da liberdade do homem, da vida volitiva, livre.

                        - Mas há uma distância muito grande entre o Valor enquanto visualizado e o Valor realizável, vivenciável pelo homem...

 

- Uma advertência se faz desde já necessária: se o Valor é conceitualmente contemplando, enquanto objeto de um conceito, que o integra na sua característica própria, se ele é uma conformidade, está dentro de uma idéia de relação de conformidade, quando é vivenciado (e nós estamos vivenciando continuamente o Valor), ele é uma trágica desproporcionalidade. Associam-se, com plena coerência, sem nenhum paradoxo, a afirmação da conformidade do dinamismo dos seres com seus fins com a trágica desproporcionalidade. Se o Valor é um pseudônimo de Deus, uma presença Iaica do Absoluto na consciência humana, se o Valor tem essa raiz última, então há de fato fundamento nessa trágica desproporcionalidade, porque somos chamados a uma tarefa para cuja realização em plenitude não temos condições totais de realização. Essa é a razão pela qual, no chamamento evangélico, pede-se que o homem marche para uma perfeição. Não se diz que ele irá possui-la. "Buscai ser perfeitos como o vosso Pai é perfeito". Há um chamamento do homem para a realização, mas o homem, na sua finitude, não dispõe dos elementos de integração total na esfera axiológica. Essa conformidade total é uma impossibilidade, porque a conformidade total seria a identidade. Ora, a identidade do ser consigo mesmo só existe em Deus. Só Deus, o Valor Absoluto, estaria em condições de não ter em si essa tensão, que revela a contingência humana na busca do Valor. Há uma desconformidade entre o Valor que chama, porque ele é de transcendência absoluta, e a finitude humana. Essa consciência de tensão, de drama entre o chamamento e a resposta, permanecerá. E esse drama se faz evidente, quando o Valor é vivenciado, buscando transformar­se uma vida que é dada numa vida que deve ser. A distância é tal que é o sofrimento que especifica a condição humana. Essa é uma revelação da contingência e, ao mesmo tempo, da busca da transcendência.

- A idéia de conformidade na constituição da idéia de Valor nova na História da Filosofia?

- Antes de a Axiologia se constituir como problemática autônoma, a consciência filosófica, em milênios, havia assumido uma posição muito interessante. Não é da Filosofia Contemporânea, mas é da Filosofia Clássica, a tarefa de definir a verdade, o bem, a beleza e a justiça. Exceção feita à definição da justiça pelo gênio romano, os demais valores racionais, que acabo de enumerar, sempre foram definidos em fórmulas que revelavam ser o Valor uma idéia de relação.

Notem que estou fazendo a análise do Valor na esfera dos seres contingentes. Quando chegar o momento de partir, da definição do Valor, válido para a esfera dos seres contingentes, para a idéia do Valor em Deus, então a análise terá que se constituir numa forma de vinculação do contingente ao Absoluto e ver em Deus o supremo Valor. Lá não há relação de conformidade. Lá há relação de identidade do ser consigo mesmo. Por isso, Deus é Palor Absoluto, porque é o Ser Absoluto.

Feita essa advertência, retornemos ao registro da História. Quando, então, se queria definir a verdade, qual era a definição dada correntemente, encontradiça em tratados e em compêndios? A verdade é a conformidade do pensamento com a coisa pensada (idéia de relação de conformidade). Quando se queria conhecer a norma ética, o que se pensava sobre o bem? Quando um ato é bom? Quando ele é conforme com a natureza racional do homem (a idéia de relação de conformidade). Sempre que se queria definir a beleza, ela se expressava dentro de uma idéia de relação, de proporção, de simetria, de harmonia. Aliás, Bergson faz uma análise muito bem feita sobre isso naquele trabalho ”Le Rire". Antes de constituir uma Axiologia, por­tanto, os valores eram pensados pela consciência filosófica clássica como sendo enquadráveis e cognoscíveis dentro de uma idéia de relação. Quando, para construir o conceito de Valor, apelamos para a idéia de conformidade, estamos apelando para uma idéia de relação. Dentro dela são enquadráveis os Valores racionais, que citei há pouco.

                        - Que é então o Valor? E o que é este mais face ao ser, essa posição de ser que o leva à transcendência? O que significa, enfim, essa posição de ser que é o Valor?

 

- Valor não é o ser, o valor está no ser e expressa realmente um mais, uma transcendência no próprio ser. É um mais face ao ser.

Nós definimos essa posição de ser, considerando os elementos materiais e um elemento formal que a integram. Há três elementos materiais integrando o conceito de Valor. Pensado em relação ao ser, a idéia de ser é básica no conteúdo conceitual do valor. E o ser aparece no fato de afirmarmos na definição que o Valor, sendo a conformidade do dinamismo do ser com os seus fins, não é pensável, se não o referimos ao ser. O ser está na base do conceito. Que tipo de ser, que forma de ser, que estado de ser? A idéia de ser deve ser pensada dentro de um estado dinâmico. O ser que nós apreciamos é um ser em devir, um ser heraclitiano, um movimento para, uma pulsão, uma projeção das linhas de força do ser para determinados rumos. Então, o ser e o estado dinâmico do ser. Mas não basta. Esse dinamismo não é causal, é finalizado. Esse dinamismo, essa força não é uma força que explode, abrindo toda a sua potencialidade em leque, desordenadamente, caoticamente. Esse dinamismo expressa uma pulsão finalística. Há dentro do ser, na figura do Valor, um dinamismo finalizado, como nós dizemos. Ele se projeta em determinado rumo.

- Em que momento surge a presença do conceito de Valor no espírito do homem?

- Surge essa percepção, quando a razão, descobrindo os fins do homem, para os quais se projeta todo o dinamismo do ser, percebe a conformidade desses dinamismos finalizados com os próprios fins, que levam à realização total e plena do ser humano. Então, quando, entre as formas de comportamentos múltiplos, que são possíveis para o homem se realizar, dentre as muitas linhas possíveis para o seu agir, encontramos linhas, que têm o caráter de expressar funções finalizadas do ser, e quando encontramos a conformidade dessas pulsões com os fins, nesse momento, pela revelação que a conformidade faz da presença do Valor no ser, dizemos que há um Valor. O Valor seria então a conformidade desses dinamismos com os fins do ser.

- Ao se afirmar que o Valor é uma idéia de relação de conformidade entre o dinamismo e esses fins, afirma-se, conseqüente­mente, que a conformidade é criadora do Valor?

- Não. A conformidade é um sinal, um quadro revelador do Palor, um sinal de presença. Ela indica o momento e a situação em que essas pulsões do ser finalizado se constituem em funções valiosas do ser humano. É nesse momento preciso que surge a configuração do Valor no ser.

- Então, se a conformidade é apenas um quadro revelador do Valor, qual é sua força geradora?

- A força que gera o Valor numa ação, numa situação de vida, num estado de vida, é a liberdade, inserindo, na estrutura da ação, a presença maior ou menor do fim. O fim tem expressões múltiplas. Ele pode ser apanhado mais ou menos, de uma forma ou de outra forma. Quando há, na estrutura do agir, a presença do fim, uma presença, que é inoculada, que é colocada nele, que é ajustada a elé pela liberdade, nesse momento temos o Valor.

- Para Lavelle, o Valor é a realização de uma possibilidade, é a transformação do possível no real...

- Enquanto o Valor não se concretiza e se objetiva numa sinfonia de Beethoven, relativamente à polarização do belo, enquanto ele não se concretiza e objetiva no atendimento da polarização da verdade dentro de uma intuição genial, como a de Newton sobre a gravitação universal (verdade), ou dentro de uma consciência filosófica aguda, como, por exemplo, a de Aristóteles na fixação das estruturas do ser, das leis do ser, dos estados do ser; enquanto ele não se fixa aí, ele está realmente no mundo do possível. Depois de fixado, está objetivado, é pensamento concretizado, é verdade inserida na vida. A sua irradiação se faz nas outras consciências. Toma, não só objetividade, através de um documento, de uma pauta, de um cinzel, mas através das páginas de um livro, da formulação de uma definição.

Aí está toda a beleza da mensagem de Kierkegaard, a tortura do espírito de Kierkegaard: o ser possível. O ser possível é que dá uma dramaticidade a toda a existência, para Kierkegaard. Tudo isso são linhas de um ser possível, que pode ser. Quando eu confronto 0 que pode ser com o que sou, surge a tendência de fixar o possível no real, de transmutar uma linha de conformidade (aqui a palavra conformidade aparece com toda a sua significação) possível do meu agir na minha realidade existencial. Seja um agir intelectual, seja a resposta a uma exigência da minha sensibilidade, da minha passionalidade de artista ou das minhas exigências críticas de pensador e de filósofo ou de cientista. Quando eu me apercebo disso, me apercebo de uma possibilidade de ser, e vejo o Valor como realização possível, como possibilidade de ser, concreta e realmente. Quando eu faço um esforço de passar do possível para o concreto e para o real, estou encarnando o Valor. O Valor está diante de mim, se quiserem, numa subconsciência ou numa consciência humana, como a expectativa de uma transmutação do possível num real.

                        - O senhor acredita que seja possível a plena realização do Valor na vida humana?

 

- Mesmo quando eu concretizo o possível, não o concretizo em forma perfeita. Fica sempre uma margem de Valor a mais, para me chamar para novas escaladas, novos esforços de concreção, para um aperfeiçoamento crescente de adequação cada vez mais perfeita e mais acabada entre esse estilo possível de vida que eu vi e o meu estilo real de vida, ou o estilo real de vida dos demais homens. O homem que descobre o Valor não se torna um descobridor mas um operário da realização dos fins humanos na existência humana.

O valor aparece, portanto, como uma linha possível de ação conforme com os fins humanos. A percepção intelectual é o itinerário de realização do Valor, mas o esforço de concreção é da liberdade. Pela operação da liberdade, eu transformo o possível no real. Quando eu faço essa concreção da linha possível de uma realização mais acabada, seja face à polarização da verdade, seja face ao bem, à beleza, à justiça ou aos demais Valores também vitais, eu injeto, por as­sim dizer, numa estrutura de ação comum, uma linha de realização que está em conformidade com os fins humanos. Isso é a perfeição humana, é o caminho da realização humana. O Valor seria, portanto, uma força de realização integral do homem, que estaria no fato da conjugação da visão racional com o consentimento da liberdade.

Até aqui estou analisando o Valor no ser. Não estou dizendo nada sobre o ser no Valor. São duas faces. Estou analisando o Valor como me é dado e eu o vejo no ser; mas ele precisa ser analisado no seu próprio ser, que é uma linha de possibilidade que a liberdade encarna na estrutura da existência e na estrutura do agir. Quando eu digo isso, não estou dizendo como ela encarna e o que existe no pro­cesso de concreção da linha possível de perfeição maior do homem em relação à ação. Realidades psicológicas? De que tipo? Que outros elementos estariam presentes?

O Valor é uma expressão de evasão, de escalada, uma ex­pressão de transcendentalização. Que outros elementos integram aquilo que poderíamos chamar a ontologia do Valor? Se eu vou dizer do Valor apenas que ele é constituído de estados psicológicos, senti­mentais, volitivos e racionais, vou descambar para a posição, que condeno, que o absorve no ser. Eu disse que ele é ser, mas é um mais no ser. Ele expressa a marcha do homem para evadir-se de sua própria natureza, que é preordenada, pela fruição que a liberdade faz, de modo particular do Valor bem.

Então estão indicados, na estrutura conceitual do Valor, os três elementos materiais, que o constituem, e ó elemento formal, e feita a advertência de que, em verdade, o Valor não é gerado pela conformidade. A conformidade é apenas um índice, um quadro revelador da presença do Valor no ser. Não é sua força geradora. Essa força é a liberdade. É a presença do fim na estrutura do agir. Essa presença é produzida pela liberdade que, cedendo, concedendo e consentindo com uma visão racional dos fins, incrusta, insere, projeta dentro da estrutura do agir aquela linha ideal de realização, porque é uma linha conforme aos fins humanos. Realizar os próprios fins é buscar a perfeição. Essa é uma frase aristotélica que marca a definição que estou dando.

Aqui estão os elementos fundamentais para a análise. Depois disso, teríamos que abrir página por página, verificar, na estrutura conceitual o ser, o dinamismo finalizado do ser e o problema da conformidade; analisar, depois, o problema da presença da razão e da liberdade como forças modelares da constituição no Valor, enquanto ele é experimentado, vivido e depositado, encarnado na História. Estou falando de um Valor que transcende o homem, chamando-o para uma tarefa inesgotável. Por isso, digo que ela é trágica desproporcionalidade. E aquele gemido do Da Vinci, porque não realizou sequer a metade da tarefa que visionou, não concretizou a metade das intuições que teve. Um asceta morre também gemendo por seus pecados, achando-se pecador e imperfeito. Um cientista, se é autêntico, morre com a consciência humilde da contribuição mini­ma que deu diante da visão do que poderia ter dado em matéria de exercício intelectual, de atividade em meditação, de busca e de pesquisa. Para explicar essa, não digo decepção, mas consciência de impotência do homem para a concretização integral do Valor, a causa é sempre a infinitude da ciência do Valor, o fato de ele ser desproporcionado à capacidade humana. Expressa-se, portanto, o Valor como força de grande tensão.

Poderíamos analisar também o problema do valor na natureza. Um caso muito interessante é o do Palor na Física Atômica. O caso da variável H de Heisenberg, a projeção de uma concepção metafísica grega, o hilemorfismo de matéria e forma, na Física Atômica. Basta ver, para isso, na Física Atômica, a presença disciplinadora, limitadora, impedimento para a queda no nada, da variável H de Heisenberg, que se mostra como forma limitadora da matéria, algo que impede que a matéria prima tombe do nada. Primeiro, projeção metafísica do conceito de matéria e forma e verificação do Valor da Natureza como força que impede a indeterminação. Esse determinismo mínimo possibilita a Física Quântica. Se não houvesse isso, seria o país das fadas. Em segundo lugar, verificação do que representa o Valor na realização do homem, um impedimento, para que ele não caia no nada mas busque sua plenitude. Aqui o Valor atua em socorro da natureza, no sentido de possibilitar e facilitar esse chamamento que o ser faz aos seres, no sentido de buscar a sua plenitude e repousar na sua plenitude.

No ano passado, estive também analisando o Valor como uma espécie de reforço da liberdade, dadas as características próprias da natureza humana. A versatilidade, a elasticidade, o quadro flexível da natureza humana se prestando, portanto, aos transviamentos que levam às deformações do homem, ao infra-homem, quase ao oposto do homem. Essas oposições parecem revelar a inexistência de um determinismo, próprio da natureza. Mas de fato estão a revelar também a necessidade de um reforço da natureza humana. O Valor não está dentro da natureza, mas está em contato com a natureza, procurando levantá-la, sublimá-la, fazê-la conduzir-se para uma realização plena. É uma idéia de reforço, uma força que colabora com a natureza, no sentido de socorrê-la na realização pela qual ela anseia, pelo seu voto fundamental de buscar uma ordem, de buscar o seu bem integral, sua perfeição.

                        - E a análise do ser do Valor que o senhor anunciou?

 

- Essa é uma segunda parte. Só depois de uma retrospectiva do problema do valor no ser, posso descobrir a ontologia do valor. Mesmo quando apresentamos o valor como uma força transcendental e uma força de superação, de evasão do homem dos limites da natureza, ainda reconhecemos a existência de uma ontologia do Valor. Portanto, é absurda a concepção de Hartmann de oposição entre o Valor e ser. Estando no ser, ele tem que ser conhecido, enquanto ex­cede a natureza humana. Mas não é um ser ideal, porque a região em que se situa é uma região ôntica. Faltou a Nicolai Hartmann a coragem de dizer que essa região é a região do Absoluto. O valor é um pseudônimo de Deus, é a presença laica de Deus na consciência do homem. São forças que a natureza utiliza, para levar o homem à fruição da plenitude do ser, que é o Valor.

A natureza tem força de regulação, porque é uma força que aprisiona o ser. Sem a natureza, o ser explode, o ser é um caos. Quem ordena o ser é a natureza. Ela permite que essa massa de energias, que integra o ser que tem uma natureza, se dirija, dentro de determinados limites. É a conformidade com a natureza humana. Essa força, que limita o ser na sua realização, que aprisiona o ser, dá ao agir normas e limites para sua realização. A experiência histórica mostra a figura do homem, do super-homem e do infra-homem. A figura de um ser humano entregue às polarizações biológicas do prazer e da dor, dos prazeres da mesa e da cama, que, portanto, quase não se distingue do cavalo e do cachorro, e do asceta, o herói da polarização do bem. Surge aqui o valor, dada essa flexibilidade, essa abertura perigosa da natureza humana e essa ambigüidade da própria natureza humana, no sentido da realização do ser humano, de natureza nacional. Quando o determinismo causal não é apto para, na sua causalidade determinante, realizar a limitação do ser, quando isso não se processa, vem o Valor, como segunda natureza, como polarização do fim, como polarização que imanta, como reforço da natureza do ser do homem, da natureza do animal racional e livre. O Valor reforça o impulso causal, no sentido de determinar a realização humana numa direção determinada, pela descoberta que o homem faz dos fins que deve realizar.

Sob certo aspecto, Palor significa um protesto contra a acomodação do homem no estado em que está. É um chamamento para que ele se evada dessa situação existencial para uma situação ideal de estilização do ser. O Palor não é a liberdade, não é a visão intelectual, não se esgota no ser, embora nele inserido. Transcende o ser. É aquela percepção que a consciência tem, e que a visão racional tem, e que a liberdade consente em realizar, no momento em que está realizando a linha possível da perfeição humana.

                        - Não se recai, a partir daí, na afirmação do Valor como simplesmente um estado psicológico?

 

                        - Não. É um estado psicológico de atividade racional e de exercício da liberdade, mas é uma atividade regulada por algo que transcende isso. Em linguagem de um professor de hematologia, é um momento de transfusão. Realiza uma transfusão de ser do homem: de um ser dado, para um ser que deve ser, um ser possível mais perfeito, porque mais de acordo com os fins humanos, cuja realização é inexaurível. O homem na sua tarefa histórica nunca a esgota.