Diálogos


DEUS

 

- Na busca do ponto de partida de seu filosofar, não basta perguntar pelo momento biográfico no qual explodiu sua angústia filosófica, nem mesmo explorar as situações e circunstâncias em que esse momento ocorreu; não nos basta também investigar a natureza de suas primeiras preocupações filosóficas, nem as influências sofridas; para nós, seria mais interessante ainda conhecer a idéia ou as idéias que dão suporte lógico à estrutura de seu pensamento. Qual é essa idéia ou quais são essas idéias? Devemos ficar com a idéia da ordem cósmica e da ordem moral?

- Não, não seria correto. É a idéia de Deus. Eu fiz a análise comparada da experiência metafísica e da experiência ética e procurei demonstrar como, da experiência ética, se chega necessariamente à idéia fundamental de Deus. Até em Aristóteles. A doutrina de Aristóteles na "Ética a Nicômaco" está amplamente embasada nisso. Toda a experiência ética de Aristóteles revela, na presença do valor ético, a concepção de fins. A Ética iluminou a metafísica de Aristóteles e, quando ele toca em Deus, na metafísica, a idéia de Deus, já com coloração ética, vende dignidade àquela glacialidade da Metafísica. O ato puro não deixa de ser glacial, mas assume significação diferente.

Com esse espírito, em nome de Deus, a gente lança a nau. Duc navem, como disse o Senhor a Pedro, para não ficar na margem mas lançar a barca ao longe, em alto mar.

- A idéia de Deus se apresenta, portanto, como o suporte lógico necessário para a Ética e Metafísica ou, além disso, ela é condição essencial do pensar em geral?

- Um filósofo ilustre, questionado sobre se havia compatibilidade do pensamento religioso com o pensamento científico, ou sobre o tipo de relacionamento do pensamento puro com o pensamento teológico, respondeu, fazendo apenas uma pergunta: "É possível pensar, sem pensar Deus?" Essa é a única relação que cabe diante do mistério, essa é a única posição que permite que não fiquemos gaguejando intelectualmente, paralisando completamente a capacidade da resposta à pergunta, ao problema. Isso aí é o terreno mais intimo do sacrário, é o sétimo véu...

- O senhor está confirmando, então, que a idéia de Deus é o ponto de partida de sua filosofia?

- Sempre que penso algo, estou pressupondo o reconheci­mento da minha afirmação total de Deus, como realidade da qual se parte e que é condicionante da tomada de posição do pensamento filosófico. Mesmo aquele que nega Deus necessita partir desse pressuposto, porque, se negou, aceitou a idéia de Deus, sob a forma negativa, para embasar essa negativa.

Para mim, a base de tudo é Deus. Há, aliás, um depoimento que considero a expressão mais próxima daquilo que eu deveria dizer e não disse. É do William James. É formidável! Diz ele: “Pensar além da idéia de Deus é psicologicamente impossível ao pensamento humano". É a melhor coisa que o William James disse em toda a vida. Esta e o outro registro, que está na autobiografia de 1918, o último trabalho dele. O primeiro depoimento, portanto, é relativo à capacidade do espírito humano, e o último se refere à relação do espírito com Deus. Portanto, "pensar além da idéia de Deus é psicologicamente impossível ao pensamento humano. E pensar fora disto (veja como e1e estabelece o além e a relação da oposição), contra isto, é paralisar o pensamento no absurdo".

- Muito se discutiu, na História da Filosofia, sobre a possibilidade ou impossibilidade de a razão humana chegar à idéia de Deus que, exatamente por ser a idéia do absoluto e do infinito, não cabe na inteligência relativa e finita do homem. Como o senhor se posiciona em relação a essa controvérsia?

- Numa passagem de suas "Confissões", Santo Agostinho fala do relacionamento com o Absoluto, que está para ele como o supre­mo mistério. Aliás, Santo Tomás confirma a angústia de Santo Agostinho. Nesse sentido, pode-se afirmar que Santo Tomás é agnóstico. Não sei se estou escandalizando. O Cardeal Mercier analisa muito bem esse momento em que Santo Tomás assume uma posição agnóstica. EIe não é agnóstico, enquanto ocupado com o problema de definir a posição do homem, a posição do mundo, a existência de Deus. Aí e1e afirma, ele analisa genialmente. Mas há um momento em que ele silencia, porque não há penetração possível. É quando se trata do conhecimento da natureza de Deus. Ai há suspensão do pensamento, por sentir que chegou a algo que a palavra não traduz. É impossível conceituar. E Santo Agostinho, quando fala desse mesmo problema, diz: "Deus é a suprema distância e a intimidade suprema".

                        Assim, quando vou embasar a estrutura do meu pensamento, encontro essa presença. Como disse Nosso Senhor, "no vosso interior está o reino de Deus". Eu tenho que surpreender esses momentos de suprema intimidade, de ter tocado na presença de Deus, que se dá na consciência de cada homem, de cada pensador.