Diálogos


A IDÉIA DE ORDEM

 

- O senhor declara que a idéia de Deus é o embasamento lógico de toda a sua estrutura de pensar e afirma também que, nos ensinamentos de Aristóteles, Santo Tomás e Santo Agostinho, Deus é o supremo ininteligível. A capacidade da inteligência humana foi até comparada por eles à visão da coruja, que por isso mesmo se tornou símbolo da Filosofia: como ela não consegue enxergar, a partir do alvorecer até o ocaso, da mesma forma a nós é vedado o conhecimento da noite negra, que é a matéria, e da luz plena do meio-dia, que é Deus. Como, apesar disso, essa idéia pode fundamentar seu pensa­mento?

                        - A partir da idéia de ordem. Na última aula que dei na Faculdade de Direito, andei perto disto, embora em outra área. Comecei dizendo ser profundamente lamentável que, algo que deveria ter sido matéria da primeira aula do curso de Direito, fosse objeto enfocado, de forma responsável, apenas no segundo ano de um curso de pós-graduação, para bacharéis, e não para os que vêm iniciar a aprendizagem do Direito: o problema da ordem. A ordem é uma coisa tal que o sujeito faz papel de boboca, do ponto de vista da exigência crítica do pensamento, se passar uma existência como advogado, ou mesmo como eminente jurisconsulto, membro até do Supremo Tribunal Federal, esquecido, se omitindo ou abstraindo dela. E uma realidade fundamental, essencial, e tem presença onímoda. A ordem é universal, é uma atmosfera, é um clima.              

Antes de ser uma realidade representada, ela é uma ambiência. É a mesma coisa que se pode dizer quanto ao problema da relação. Porque, quando o homem assume posições fundamentais na vida, não é diante da sociedade, não é diante da cultura que ele as assume; é diante do Absoluto, diante de Deus. E aí a gente está como na posição que Kierkegaard vai buscar em São Paulo: temendo e tremendo. Vamos pegar Santo Tomás, ele mesmo. É em verdade, uma censura, uma lamentação: eu lamento que Santo Tomás não tivesse visto isso. Ele parte do conceito de lei, para estabelecer o conceito de ordem. Mas a primeira coisa que me veio na cabeça, ao encontrar isso, foi esta: ele deve ter-se equivocado. Um homem como Santo Tomás não poderia deixar de ter visto isso. De quem é o primado: da ordem ou da lei? A lei pressupõe uma ordem ou a ordem pressupõe a lei? Santo Tomás opta pelo primado da lei. Primeiro está a lei, depois a ordem. Mas eu defendi a tese oposta: primeiro está a ordem, depois está a lei.

- Como? Por quê?

                        - Parti do conceito fundamental de vida eterna. Aí estava tudo. Aí se centralizava toda a dificuldade. O que é a vida eterna? Ela não é lei. O que se encontra na origem é uma ordem constituída, que é o próprio Ser de Deus, fonte, portanto, de toda ordem. E como é que vou aplicar uma lei à essência do ser, ao Ser Absoluto? Quando o homem toma consciência da ordem, através da forma de existir dos seres que ele apreende (primeiramente o próprio ego, em forma experimental metafísica, para se seguir uma posição conceitual), nesse momento, aquilo que ele apreende reflete o Absoluto, que é a fonte de toda ordem e que é, em si, não uma lei, mas uma existência e uma essência, que aí estão estabelecidas como expressão de um relacionamento. Ordem implica idéia de relação. Por isso, repito que Santo Tomás, no fundo, não põe o tema em lugar próprio. A idéia da ordem está radicada na idéia do ser, na intuição primeira, metafísica, do ser, portanto, e está radicada, sob a figura (que é difícil de se perceber) de uma relação. A experiência metafísica está, rigorosa e inevitavelmente, condicionada à percepção dessa relação. Não se percebe o ser sem essa relação. Qual é a relação? Eu, ente, me apercebendo como ser, me apercebo, faço a verificação experimental em mim, de que o ser que conheço intuitivamente é o fundamento da minha existência. Sem o vínculo do ente ao ser, Doutor, o senhor não está na experiência metafísica.

                        A experiência metafísica é o desvelamento, é a revelação do ser que está em mim, batendo o dedo à porta da minha consciência, para fazer a sua afirmação. E a consciência, que está em mim, de que estou fundado em um ser. Sem a percepção de mim e do ser que me funda, na minha condição de ente, não tenho experiência metafísica. O conhecimento metafísico fundamental está condicionado à apreensão, pela consciência, da relação que me vincula ao ser que me funda.

                        - E o que é esse ser, apreensível na experiência metafísica?

- Um ser em constituição, em um núcleo de iluminação imediata muito difícil. É do ser que me transcende e que me funda, a mim, ente, ser existente, que venho ao Ser Áureo, que é de Deus. O ser se dá como ele é, determina a forma da minha apreensão. Então eu me considero inserido no fluxo da realidade, no contexto ontológico. Apreender o ser é apreendê-lo em uma multiplicidade (essa afirmação é pertinente no conceito de Ser Absoluto e no conceito de ser relativo, contingente). Quando apreendo o ser tal como ele se dá e se impõe à minha apreensão, percebo que ele é múltiplo (veja a universalidade do ser), cabendo, portanto, nessa apreensão da realidade do ser pelo ente, tanto a experiência do Absoluto, que está no núcleo da experiência metafísica, quanto a do contingente, que também ali está. Pois bem, essa apreensão já me traz a vertebração, a estrutura da relação que apreende o ser como núcleo meu, como o ser que me funda: apreendo o ser e o meu vinculo com os seres que comigo coexistem. Aqui aparece, não uma coisa molusca, cremosa, mas algo traçado, organizado, porque, na minha permanência na relação, na minha permanência no ser e na permanência dos seres com os quais faço a apreensão do ser, eu encontro uma ordem. Está aí já perfeitamente traçada a figura da relação que está inclusa na experiência metafísica. Tenho, então, a percepção da multiplicidade, da universalidade das experiências que ocorrem comigo.

- Mas, em que oportunidades didáticas o senhor explorou a idéia de ordem?

- No ano passado, fiz uma longa análise, primeiro da experiência metafísica, depois da experiência gnosiológica, relacionando ambas; em seguida, da experiência ética, que é outra recorrência fundamental para mim; e, depois da experiência ética, a experiência do bem, a experiência jurídica, pois a experiência jurídica é uma espécie da experiência ética, e justo é uma espécie do bem. Para a configuração da idéia de ordem, fiz uma utilização ampla da objetividade do bem, o que é uma resposta a Sartre. Na tese de Sartre, o bem é de uma transcendência intranscendível. Não! É a transcendência transcendida.

Para a descoberta do conceito fundamental de ordem, a experiência ética é fundamentalíssima, porque a primeira resistência que a liberdade encontra é justamente o seu limite, o limite do homem. A medida do homem é o bem. Encontra-se, portanto, a ordem através da polarização do valor bem sobre a liberdade. Aqui já há uma revelação da idéia de ordem, aqui aparece já o ser vertebrado, estruturado, relacionado. A ordem está (nisso está a descoberta da gênese da idéia de ordem) no relacionamento universal e objetivo que se impõe à liberdade. Dentro da pessoa, é a verificação de que nós esta­mos no ser solidários, não solitários. Essa solidariedade é uma ordem, que existe antes do pensamento que a descobre. O pensamento vem a descobrir a ordem, mas ela é condição da própria descoberta. Como dizia há pouco, a experiência metafísica está condicionada a essa percepção; a realidade da ordem é condicionante da própria percepção da relação metafísica.

- E como se aprende o conceito de ordem?

                        - Na Grécia, e mesmo na Idade Média, o pensamento metafísico colocava a distinção como um dos elementos transcendentais. Mas, na análise da unidade e pluralidade (a distinção conduz à idéia de unidade do ser), aparece, reiterada, a idéia de relação entre os conceitos fundamentais. Quando se fazia o processo da distinção no pensamento metafísico (esse prefixo dis significa separação), a própria operação separadora, que divorcia no ser determinados aspectos gerais como propriedades do ser, revela que há uma propriedade que é fundamental, que é lei do ser: ao me apreender, num momento, e me apreender dentro do ser, que é meu fundamento, revela-se uma relação de subordinação. Para que eu me distinga dos seres, que me fundam como ente, já estou fazendo, não só a apreensão de uma idéia de relação e de subordinação, como estou já tendo a primeira percepção da ordem, das relações permanentes, estáveis, entre os seres, estou já apreendendo as propriedades do ser. Porque eu não posso distinguir o uno, se eu não penso em mim e numa pluralidade. A existência da pluralidade está na própria percepção do uno. Aliás, Mercier tem uma ilustração muito interessante sobre isso. Diz ele: a intuição é como uma criança; ela toca o concreto, o objetivo, uma coisa existente. É como uma superfície rugosa, fria, que a mãozinha metafísica toca: o outro corpo - o ser. Ela toca o ser, como uma mãozinha toca num outro objeto. Mercier, é claro, está trabalhando a experiência como intuição intelectual, aquela que dirige o espírito, a atividade reflexiva. O próprio ato da experiência está dentro de uma posição crítica, reflexiva. Mas a experiência é a experiência do ser. Aqui ele sente a ação acariciante do pensamento. Um envolvimento afetivo, alguma coisa que revela à criança que não é aquela terra que ela tocou, fria, inerte, rugosa, mas há um calor humano. É ser, também, mas é um ser que associa a primeira impressão de ser a uma impressão nova. E ele se lhe dá, se distingue, pela vez primeira, dos demais seres, que têm outras propriedades também. Ele discrimina, separando, e ao mesmo tempo afirmando: afirma a unidade funda­mental do ser.

- Alguns pensadores, desde os pré-socráticos até Hegel, têm identificado o ser com o vir-a-ser. Não seria essa uma tentativa também possível de fundamentar a idéia de ser, ao contrário da idéia de ordem?

- Heráclito: mutabilidade, devenir, vir-a-ser. Parmênides: imutabilidade, unidade. Sócrates, com seu gênio, também percebeu a coisa. Que fez, quando começou a se sentir emparedado, sitiado em suas posições? Nas relações, os fenômenos ficam, e permanecem as relações, que dão margem às leis, científicas ou morais. Essa foi a tirada dele. É claro que ele não tinha à disposição o material de cultura que temos hoje. Ninguém, afinal, para ser fiel a Sócrates, vai repetir a fórmula dele.

Montesquieu participava de um debate e lhe perguntaram o que era a lei. A resposta foi que lei é uma relação necessária (veja que sugestão interessante é essa de Montesquieu) que se deriva da natureza das coisas. De quem é, de novo, o primado: da ordem ou da lei? Primado ontológico ou lógico? Eu defendo que é a ordem. A lei vem depois e pressupõe a ordem. Ora, a definição de Montesquieu diz muita coisa sobre isso. Para ele, o primado está na natureza das coisas. Mas a natureza das coisas não se dá como lei, no sentido que o pensamento humano atribui à palavra lei. Há um italiano formidável, em que pesem suas idéias políticas, o Rodolfo Mondolfo, que tem de­fendido essa tese. Diz ele: "A origem do conceito de ordem universal é subjetiva; foi percebendo, o homem, o seu interior, que projetou essa idéia de ordem sobre o universo". Portanto, o universo não oferece a possibilidade de verificação sensorial, visível, dessa ordem. A elaboração é de natureza intelectual, embora pressupondo já uma ordem universal.

Eu diria, então, que o universo é quase heraclitiano, de vir-a-­ser, de devenir, mas isso só aparentemente, não realmente, porque, se os seres estão em mutação contínua, não estão em mutação contínua no ser. É o fenômeno da Mecânica. Os fenômenos são integrados por massa, matéria e energia, como os senhores sabem, e nós temos nas mãos hoje. São as leis da termodinâmica: massa e energia. Mas, homens ilustres, como Lavoisier, revelam que, na mutabilidade dos da­dos experimentados, existe a imutabilidade, que parece universal. Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Também a lei da entropia. Há um equilíbrio de forças. As exigências da força sobre a matéria são sempre as mesmas. Na ordem natural, biológica, os tipos, as espécies não se modificam. E o homem percebe o imutável, uma percepção empírica, mesmo que não-racional e fundada criticamente.

De sorte que, em relação a Heráclito, a minha posição é esta: a evolução não implica, absolutamente, a negação da ordem, porque ela se faz segundo uma ordem. Para que haja evolução, é necessário que haja a permanência, senão não há evolução, mas destruição.

                        Isso tudo é a afirmação, até o fundo, da realidade de Deus, do Absoluto. Pensar é repensar o pensamento de Deus. No fundo é isto: repensar a ordem. Nosso conceito de ordem está radicado nisso. Negar isso... que estupidez! Se essa negação fosse apenas um erro de inteligência, mas é um mal. Sob certo aspecto, é um pecado da inteligência, ou mais grave ainda que pecado. Talvez a violação da lei de Deus, no terreno puramente ético, não seja tão grave em suas conseqüências remotas. Talvez não seja tão profunda e a desarmonia que ela gera, como esse pecado da omissão de Deus, da minimização de Deus, da abstração de Deus. Isso produz uma infelicidade humana extraordinária.