Diálogos


A LIBERDADE

 

- Mas, caro mestre, se a última explicação do filosofar é causal, como explicar e justificar as divergências no pensamento filosófico histórico?

- O homem é convidado a pensar, ele pode eleger, pode e vai eleger. Há um complexo de forças que são determinantes, mas há um outro complexo que vai se revelar livre. Depois da racionalidade que determina, vamos encontrar a liberdade que escolhe. Quando exercemos o nosso pensamento, segundo as leis que o regem, encontra­mos uma série de polarizações. Não são mais determinismos causais. São polarizações que se dão à consciência, no sentido de serem atendidas, de o homem se abandonar a elas. Nós encontramos num ser, que é livre, porque é racional, a tendência, para, tomando consciência do seu ser e dos seres em cujo contexto está, resolver ó problema da condução do seu agir, da realização do seu ser.

Uma vez que o homem, atendendo às leis do pensamento, atende coativamente a essa necessidade de integração das experiências, de globalização das experiências e de apreensão do seu sentido, surgem, então, algumas perguntas, o homem sente a necessidade de atender a determinadas exigências. Uma é fundamental, básica, condicionante da sua realização. É o problema do seu destino. Dentro desse mundo representado, qual é a minha destinação? O homem vai tentar a resposta a esse problema, que é um problema existencial ao qual ele não pode fugir, porque "nous sommes embarqués", como dizia Pascal. Estamos lançados nesse turbilhão cósmico universal. Ele vai atender a essa necessidade, não apenas pelo determinismo intelectual, mas por exigências de realização pessoal. A polarização dos valores está presente, face à liberdade do homem, no sentido de ele optar entre esta ou aquela linha de realização. Aqui surgem os fatores livres que integram a estrutura filosófica. Ao lado de uma razão que explica, surge a exigência de uma liberdade que busca o seu objeto, a sua medida, o seu sentido. Nesse momento, a Filosofia co­meça a se exercer, não apenas para explicar, mas para, na explicação, dar ao homem uma condição de realização. E o que o Marcel chama de Filosofia de salvação. O homem busca na Filosofia uma resposta que dê sentido a sua vida, que dê fundamento a sua realidade; busca a resposta a um problema vital: o problema da realização humana. São os fatores de ordem ética, os fatores de natureza axiológica. A busca da felicidade, da beatitude humana, de uma situação de segurança na existência, são exigências que conduzem o pensa­mento filosófico a fazer a discriminação das suas tarefas fundamentais. O problema de Deus, o problema das origens e dos fins últimos, o problema ético, o problema da fórmula, que conduz à plenitude humana, o problema, que leva a considerar a linha da sua realização perfeita. Ao lado do problema da verdade, o problema do bem. O homem não só se representa como é, mas busca a bondade do próprio ser. São fatores que decorrem, não apenas de exigências puramente especulativas, mas também de exigências de realização da liberdade, de busca da plenitude da vida; são fatores que integram a totalidade da pessoa humana e fazem a estrutura da personalidade do homem.

Esses fatores se relacionam, assim como, na estrutura biológica de um órgão, se relacionam os tecidos do organismo em geral, que têm uma determinada estrutura, com uma tessitura específica para o exercício daquele órgão. A função hepática, a função digestiva, a função pulmonar são realizadas por células, mas as células que as integram, como se vê da nomenclatura médica, têm denominações diferentes, porque exercem funções específicas. Da mesma forma, na vida psíquica, as diferentes energias, que integram a realidade total da pessoa, se relacionam em formas estáveis de relacionamentos, que se vinculam, para se projetar no sentido de uma resposta à totalidade das exigências pessoais. Há uma morfologia integrada. Assim como indiquei as leis do pensamento, regendo as atividades do pensamento puramente especulativo, podemos indicar outras, que regem as relações que integram a morfologia da estrutura. São os valores, a visão dos fins e a liberdade, que busca a sua realização, que faz a sua afirmação selvagem ou reconhece a sua medida e se torna adequada às solicitações do bem. Aqui entram os fatores morais, os fatores existenciais, os fatores psicológicos, os fatores pessoais.

Conforme a personalidade de cada um, vamos ter os diferentes tipos de Filosofia. Vou caracterizar as Filosofias puramente especulativas e as Filosofias éticas, as Filosofias de salvação. A Filosofia existencial, por exemplo, é um tanto diferente da Filosofia kantiana.

Isso vai depender da História, do espírito do século, da situação até racial e cultural, bem como do grau de civilização. Haverá áreas preferenciais que levarão as Filosofias a tomarem modulações, configurações diversas, mas em todas elas encontraremos, depois do determinismo que rege as leis do pensamento, os fatores relativos à liberdade. Esses fatores se manifestam na História, sob a forma de polarizações. Polarizações, por exemplo, do valor bem e dos demais valores, face à liberdade do homem. É a liberdade do homem se realizando, dentro de uma totalidade do mundo pessoal, do mundo interior em que as tendências emotivas e outras do temperamento humano vão dar às resposta filosófica o seu caráter. Encontramos Filosofias pessimistas e otimistas, encontramos a Filosofia da imanência e a Filosofia da transcendência. Há uns que acentuam a Filosofia como tarefa puramente especulativa e intelectual, outros que acentuam a Filosofia como uma tarefa também existencial. De forma que as respostas são dadas pela forma como os homens atendem à exigência dos fatores morais, dos fatores relativos à liberdade.

Quando falamos em fatores relativos à liberdade, estamos falando de tendência para fins. É o atendimento duma lei, que se re­vela lei do pensamento, mas que é lei fundamental da ação. No início, estávamos explicando o ser, agora estamos procurando explicar o agir do homem dentro desses seres e das outras formas de ação.

No atendimento à polarização dos fins e dos valores, eu tenho a visão do campo da minha liberdade, do exercício. Aqui, estou realizando a busca do conhecimento da unidade do ser, a busca da minha realização pessoal dentro desse ser que unifiquei, através das leis lógicas do pensamento. Estou buscando o meu sentido. E essa exigência de sentido surge ainda de algo que já está apontado dentro do grupo dos chamados fatores causais. Porque há um princípio, dentre os que comandam o pensamento, que é o princípio da finalidade, que eu já encontro na experiência metafísica e gnosiológica, principal­mente na gnosiológica. Enquanto ele é princípio de explicação do ser, diz respeito à atividade do pensamento, mas, como princípio de ação, diz respeito à atividade prática, à atividade ética, à atividade moral do homem.

No campo ético, no campo da ação, o principio da finalidade se formula assim: explicar a ação é relacionar o ato com seu f m. A ação só tem uma explicação: o relacionamento dela com o fim para o qual ela se dirige. É o mesmo princípio que norteia o pensamento, que assim se formula: todo o ser que age, age segundo o fim. Essa é a fórmula da lei lógica de finalidade: Agora, aqui, não é mais o juízo de finalidade, mas a idéia de fim: "id propter quod fit". Algo pelo qual alguma coisa se faz.

Numa primeira experiência metafísica e gnosiológica, quando o homem toma consciência de que é um ser em devir, uma multiplicidade, um feixe de forças em expansão que se dilatam e se dirigem, ele certamente não vê o termo, mas vê, de um modo experimental, que essas realidades que o integram são projetadas, marcham para. O homem, como um esse ad, um ser para. Esse caráter dinâmico do ser, esse caráter heraclitiano da experiência que a própria consciência faz, essa tendência para, já está na experiência metafísica.

O segundo grupo de fatores, que integram a estrutura psicológica, que é a atitude filosófica, não é mais, repito, de integração de experiência, mas de apreensão de sentido. Apreender o sentido é conhecer a direção dos movimentos que integram a minha realidade contingente. Quando apreendo o sentido, vejo a minha relação. Sentido é aquilo que revela o relacionamento. Eu apreendo o sentido das coisas, quando apreendo o fim para onde elas tendem. Ao conhecer os fins para os quais tendem as minhas forças espirituais, toda a minha realidade psicológica, estou atribuindo valores às minhas ações. Surge a idéia do valor. O valor é a conformidade do dinamismo do ser com os seus fins. Depois de a razão descobrir os fins, a consciência está aberta para conformar nossos dinamismos com os fins para os quais eles tendem. Realizar um valor autenticamente é pôr, pela ação livre e pela liberdade, esses dinamismos, na linha de situações possíveis, mas na direção de uma possibilidade que é obrigatória, que é o dever, a polarização do valor do bem.

Aqui entramos na esfera de algo que integra a atitude filosófica e se expressa na ética e nos outros ramos da Filosofia como 0 atendimento de exigência de apreensão de sentido, de significação da vida, de uma Filosofia em que a liberdade, a ação volitiva, que não está isolada da ação racional, interfere, pressiona o exercício do pensamento. Se Descartes errou, ao dizer que o juízo é uma expressão da vontade, resultante de uma afirmação determinante da sua construção, não errou, no entanto, quando viu a presença dessa vontade, no sentido de poder deformar a ação do pensamento puro. Quantas vezes a paixão de um erro faz com que a vontade interfira na elaboração de um juízo, escondendo a realidade, não a refletindo toda ou caricaturando-a... A interferência, na elaboração dos juízos; das diferentes forças espirituais que integram o homem, é uma interferência volitiva que toda a História revela.

                        - E assim o homem tem a liberdade de errar.

- Nos sistemas filosóficos, a liberdade interfere, muitas vezes de forma subconsciente, outras vezes livremente, em primeiro lugar, no sentido de eleger seus temas. Na complexidade quase inexplicável do mundo, nessa inexaurível imensidade do ser, nesse oceano de ser, o pensamento, nos seus toques, na sua experiência de ser, elege de­terminados aspectos. A liberdade interfere, assim, já no enfocamento da temática filosófica, nos aspectos, nos ângulos do ser que vão ser objeto de reflexão, de construção e de representação total do mundo. Se o fator causal estabelece a unidade, a universalidade e a eternidade da tarefa filosófica no mundo, se ele explica a eternidade e universalidade do pensamento filosófico na História, o segundo grupo de fatores integrantes da estrutura psicológica explica a mutabilidade, o retrocesso, as linhas sinuosas, até as deformações da realidade. E a Filosofia aparece, às vezes, como algo contrário ao jogo natural do pensamento humano, como infidelidade a essa matriz de certezas que é o senso comum. Aparece uma Filosofia, não como um retrato, mas como uma caricatura do real, porque, no exercício do esforço integrador da realidade, interferem os fatores resultantes da ação livre do homem. A ação livre do homem, polarizada pela visão natural dos fins e polarizada pelos valores, explica essa labilidade, essa instabilidade, essa quase contradição, essa diversidade imensa de Filosofias que parece que não vão desaguar numa unidade, numa Filosofia Perene. É a liberdade. Não são determinismos causais, mas chama­mentos finalísticos, de eletividades, que o espírito tem, nas tarefas que deve realizar para explicar as coisas. São os fatores de natureza moral, relativos à apreensão do sentido da vida, da configuração da tarefa humana, da explicação do destino do homem. A liberdade interfere, os valores entram em ação, o pensamento se exerce polariza­do, não projetado pelo determinismo causal, mas imantado pela visão dos valores que chamam. O homem faz modulações do pensamento filosófico. Há uma enorme variedade de conteúdo doutrinário do pensamento filosófico na História, porque a Filosofia é uma tarefa, mas é também um compromisso. Os chamamentos estão aí; a resposta, quem determina é nossa vontade.

Acho que essa reflexão deixa mais claro o problema da Filosofia Perene, das relações da liberdade com o pensamento, a responsabilidade de uma Filosofia como um compromisso que o homem assume.

Com essa resposta, o senhor fica com uma pedra de toque, com uma medida, uma coisa que não é pessoal, mas que está alicerçada numa análise psicológica, está ai para todos verem e não apenas para a minha visão e satisfação pessoal.

É claro que o senhor não pode ver a fundamentação crítica das minhas afirmações, porque eu alijei todo elemento de erudição. ­Mas o mérito desse esforço é fazer uma integração com a preocupação de dar, da tarefa que nos aflige o espirito, uma visão existencial , humana, concreta, e de dar a essa exigência uma base objetiva, mostrando que ela não é um anseio romântico de homens que fogem da realidade, como freqüentemente são julgados os filósofos. Não! O filósofo não é um sujeito abstrato, desligado da vida.

                        - Os fatores da liberdade desempenham, portanto, papel importantíssimo no desenvolvimento do pensamento humano e, assim, na própria vida humana.

                        - Eu creio que esses fatores têm, realmente, importância enorme na constituição da estrutura psicológica, como expressão da aptidão filosófica. A tese da gênese do pensamento filosófico é na verdade isso. E creio que, no entendimento dessas exigências de realização, de perfeição humana, de salvação humana, o primado coube inicialmente às idéias morais. Foram as exigências da liberdade, as exigências de beatitude humana e de segurança humana, os fatores vitais, existenciais, que predominaram. Foram eles que deram às primeiras escaladas da Filosofia o seu estímulo. O homem partiu para a Filosofia, sob a influência predominante deles. Ele não partiu apenas para construir uma cosmogonia, uma cosmologia, uma lógica pura ou mesmo uma psicologia. O homem, quando despertou da indolência inicial do seu pensamento para uma escala filosófica, foi em busca de uma resposta que, lhe dando uma notícia, um conhecimento sobre o ser, estimulasse, fundamentasse e desse segurança e plenitude à sua existência.