Discursos


UM PROGRAMA DE AÇÃO1

 

O primeiro contato que, oficialmente, realizo convosco possui para mim um alto coeficiente de sugestão; uma grande densidade significativa.

Não nos inibem, nesta hora de convívio fraternal, nem vulgares sentimentos de protocolar cortesia, nem impertinentes imperativos de convenção. Não nos constrangem cenografias acadêmicas ou vãs decorações de hierarquia, muitas vezes criadoras de gestos vazios de sentimento e realidade, constrangedores e fatigantes, e tão comum nas solenidades oficiais.

É um quase dever funcional nosso a fuga dessas atitudes mais ou menos comprometedoras da inteligência, e que só complicam e perturbam essa coisa tão simples e tão bela, que é a vida, em sua espontaneidade natural, no elã ingênuo de sua liberdade criadora.

Nosso cordial colóquio, nesta aula inaugural, está carregado de implicações e encerra uma significação que merece ser pensada. Tomemos consciência dessa mensagem que nele se contém; procure­mos soletrar o que nela timidamente está escrito.

Meus colegas, aqui estamos, vós, médicos e eu, estudioso das letras jurídicas, tangidos por inspirações que temo não sejam idênticas; dominados por hábitos mentais diversos, por estilos distintos de comportamento intelectual, situados em diferentes ângulos de visão ­das coisas e dos fatos. Nossa formação científico-profissional não é a mesma: não são comuns nossas experiências: habituamo-nos a aceitar tipos de certeza distintos: A nós - juristas - satisfazemo-nos com certezas morais; vós - médicos - exigis certezas experimentais; nós - juristas - trabalhamos com a razão sobre o tecido social, modelando relações de convívio, geralmente abstratas, apenas tangíveis; vós - médicos - operais sobre fenômenos objetivos, acessíveis aos sentidos, registrando estados, condições e leis da matéria e da vida, suscetíveis de observação direta e de verificação experimental; nós, juristas, nos movimentamos num mundo de valores, formulando o dever-ser; vós, médicos, vos situais no mundo dos fatos, revelando o que é. Experiências distintas, certezas diversas, hábitos mentais diferentes facilmente conduzem a desiguais visões da realidade, a opostas apreciações de problemas, de compreensão, a estéreis solidões espirituais.

Nossa formação profissional nos situou, assim, em comparti­mentos culturais estanques; não nos possibilitou, através da posse de superiores idéias integradoras, uma osmose entre nossos setores científicos. E, no entanto, esses dois tipos de formação se processam dentro de uma mesma universidade, isto é, no interior de um sistema de vida cultural que, como sugere o nome, quer e deve realizar a unidade, dentro da multiplicidade do saber. Este fato revela-nos o problema que o ato escolar que realizamos sugere e equaciona. Ei-lo: realiza nossa vida universitária sua específica finalidade? Ou, formulando o mesmo problema, dentro de outra interrogação, mais geral e mais grave: a cultura moderna, da qual a universidade deve ser portadora, é fiel à sua natural e histórica vocação de integradora da vida, de atualizadora da totalidade das exigências do espírito, de clima e de ali­mento da vida integral da inteligência, de formadora harmônica da pessoa humana?

Há muito o objeto da ciência - o ser - está atomizado pelo es­forço de compreensão da inteligência, que não mais o vê na harmônica totalidade de seus aspectos, na unitária relação de seus elementos constitutivos.

Acresce que, na obra de comunicação dessa ciência, assim especializada e desintegradora da unidade do ser, na obra de formação cultural, não se atende, igualmente, à unidade da pessoa, ao conjunto das exigências do ser ensinado, realizando-se um processo de mera ilustração intelectual, de pura instrução, com prejuízo da formação essencial do homem, da educação, que é oferenda de nutrição integral ao homem total, que não é só ser biológico, mas que é, também, ser lógico, moral, estético, social, metafísico-religioso.

De um lado, a especialização científica, a exigência da divisão do trabalho intelectual e, de outro, a forma unilateral de comunicação da cultura, assim constituída, determinaram uma situação grandemente ameaçadora dos interesses do espírito, das elementares finalidades da cultura e da função específica da Universidade.

A cultura moderna carece de unidade, de um núcleo vital de concepções e idéias, que integrem, relacionem e hierarquizem esse imenso mosaico de conhecimentos fragmentários, de experiências isoladas, de observações parciais, de explicações dispersas. Essa carência de unidade reflete-se na vida universitária, era cujo interior somam-se e se justapõem, sem vínculos e sem harmonia, sem quadros integradores, múltiplas técnicas e ciências. Eminentes pensadores contemporâneos vêem, nesta ausência da unidade, a causa profunda da instabilidade dramática da nossa civilização.

Tem-se, hoje, uma rigorosa e universal consciência da necessidade da posse pelas inteligências, das elementares e vitais certezas e verdades, sem as quais fica frustrado o próprio processo cultural e paralisa-se a inteligência, na sua milenar aventura de constituição da ciência, de criação da arte e de modelagem da técnica. Experimentar essa exigência de unidade, como básica de todo o processo cultural, é, já, restituir à universidade sua natural destinação: a de órgão elabora­dor de uma sabedoria, endereçada à satisfação integral do homem.

Nós, professores universitários, somos, pois, chamados a uma tarefa mais alta que a de simples portadores de conhecimentos especializados, destinados à pura ilustração de inteligências ou à mera eficiência do agir; cabe-nos comunicar à totalidade do homem uma imagem unitária da natureza e da vida; cabe-nos, não apenas, instruir, mas educar; não só transmitir a ciência, que ignora o bem e o mal e desconhece o mundo dos valores, mas, ainda, oferecer uma sabedoria que, interpretando fatos, proponha ideais e sugira formas superiores de vida.

O silêncio da universidade, face a esses inevitáveis problemas do espírito, constituiria uma traição, uma demissão de sua vital tarefa. Se ela silenciar, não faltarão falsos doutores para sugerir, em cada es­quina, às novas gerações, em nome de delirantes místicas políticas, falsos e deformadores esquemas da realidade.

Meus colegas, neste rápido registro de uma anomalia da vida universitária contemporânea, encerra-se um apelo e formula-se um programa. Humanizemos a ciência. Inoculemos um conteúdo humano, um sentido universal, nas múltiplas e isoladas expressões do saber científico e profissional. Relacionemos e unifiquemos, dentro das linhas mestras da sabedoria clássica, ocidental e cristã, nos quadros da filosofia perene, todas as conquistas da ciência e da técnica modernas. Não esqueçamos que nossos discípulos não são, apenas, seres lógicos, são também seres morais; no seu mundo interior, há vozes que formulam perguntas, que há milênios o homem repete, com nobre e trágica ansiedade, e que são as interrogações que o fazem transcender à bovina tranqüilidade do mundo zoológico.

Eminentes professores, vós tendes e tivestes nesta Faculdade espíritos superiores que assim compreendem e compreenderam a vocação universitária e científica.

Annes Dias foi um modelo de cultura integral, harmônica e luminosa; ele soube humanizar sua ciência. Como Claude Bernard, ele ignorou as mutilações da vida intelectual, os jejuns metafísicos, a unilateralidade anti-humana do cientificismo. Ele havia lido em Pascal que "o coração tem razões que a razão não conhece". Para Annes Dias, como observamos alhures, o universo não era apenas uma re­torta, onde se realizam, eternamente, reações químicas, fenômenos de mecânica; era, também, poesia e caridade. Ele sabia que a ciência ilumina, mas que só o amor dilata, fecunda e eterniza o ser. Para ele, o cosmos não era tão só máquina que se examina e utiliza; era, tam­bém, paisagem que se contempla, beleza que se admira. O mundo não era só um laboratório em que se investiga e estuda; era templo onde se adora, era lar onde se ama.

Ele pensava, como eminente membro da Academia de Ciências de França, que o sábio, que tenta escalar a cadeia das causas, detém-se, quando sua ignorância lhe adverte que atingiu à região serena, onde a oração se apresenta aos espíritos profundos como a forma mais pura do pensamento humano. Essa foi a grande, talvez, a maior lição que nos legou o luminoso espírito desse sábio, que aqui apreendeu e aqui se fez mestre de mestres.

Seja essa lição do grande cientista um programa de ação para vida universitária do Rio Grande.

Ensinemos a verdade para que se faça o bem, e não apenas para que se conquiste o útil.



1 Aula inaugural da Faculdade de Medicina, pronunciada pelo Prof. Armando Câmara, Reitor Magnífico da Universidade de Porto Alegre.