Discursos


SAUDAÇÃO AO CARDEAL CÂMARA1

 

Eminência,

Não só a natureza é uma floresta de símbolos; a sociedade também o é, na caleidoscópica sucessão dos fatos que cotidianamente a constituem, e que expressou a ação livre do homem constituindo a história.

Esta saudação que lhe dirijo, Eminência, quero seja apenas uma tomada de consciência, uma apreensão lúcida do simbolismo que possui o ato que nesta hora realizamos.

Ele anuncia novos itinerários humanos, traduz o epílogo de uma experiência, expressa uma decepção, sugere novos caminhos do pensamento, prefigura uma paisagem cultural e revela rumos novos de evolução histórica.

Eminentes Professores, quem é este homem, vestido de vermelho, envolto num manto de coloração simbólica dos gestos rebeldes - heróicos ou fanáticos, das atitudes cruentas da vontade obstinada e cega; quem é este homem que aqui convocastes para lhe outorgar um título científico? Quem é este homem que fiel, após vinte séculos, a uma doutrina que Renan definiu como "estranha e bárbara" continua anunciando "a loucura da cruz - blasfêmia para os judeus e escândalo para os gregos"? Vem ele, talvez, pregar a este areópago "o Deus desconhecido" como o fez, um dia, Paulo de Tarso aos sábios da Grécia? Será que vós que viveis da inteligência e para a inteligência vos dispusestes a viver a loucura da cruz? Renunciastes, porventura, à vossa vocação de pensadores e de sábios, de homens consagrados à tarefa árdua da pura explicação científica da interpretação objetiva e impessoal dos fatos, da elucidação exclusivamente racional do mistério que envolve os seres e as coisas, da elaboração da ciência que, por defini­ção, é a moral, indiferente ao bem e ao mal, ao justo e ao injusto, e da filosofia que é apenas obra de razão da razão que quer ver, que anseia pela luz ofuscante das evidências planas? Acaso estais romanticamente resignados a viver na meia luz dos conceitos dogmáticos, a aceitar a luz crepuscular das revelações subjetivas, das convicções in­demonstráveis e pessoais? Resolvestes, talvez, trocar a ciência pela opinião, a demonstração pela sugestão, a evidência pela crença, a razão pela fé, a certeza pela probabilidade?

Srs. Professores, na inquietação que se traduz nestas interrogações que supõe uma cultura em crise, impotente para realizar a integração e a harmonia dos valores que a compõem, está desenhado todo um secular estado de alma do homem ocidental. Nele se resume o drama intelectual dos três últimos séculos.

A inteligência pagã reagira face o cristianismo cruentamente; a cor vermelha que cobre o manto do eminente purpurado, que homenageamos, simboliza e evoca como seus antecessores heróicos confessaram a Cristo.

O paganismo quis apagar com o sangue as páginas do Evangelho, cuja luz incomodamente punha a nu sua indigência e seus desvarios. Mas, fracassou!

Depois, silenciosamente, o fermento cristão trabalhou a massa humana e operou-se a reconstrução da pessoa e da sociedade; realizou-se o grande milagre da Igreja - a transfiguração da consciência humana. E surgiu com o homem novo uma nova história, uma nova sociedade, uma cultura nova. E apareceram, então; pela primeira vez na história, as universidades.

E a Idade Média sonhava o ciclópico e generoso sonho de modelagem cristã do mundo, quando, na Renascença, a liberdade do homem experimentou a nostalgia dos cemitérios greco-romanos. E nasceu o neopaganismo!

Não quis ele repetir a fracassada experiência de esmagar cruentamente a realidade incoercível da Igreja. A maior conquista do cristianismo fora a da inteligência do homem. Só pela inteligência ele poderia ser paganizado outra vez, esquecer a divina canção da esperança cristã.

E o neopaganismo iniciou a luta contra o Evangelho: apagando certezas, empanando evidências, semeando dúvidas, usando a ironia, forjando a sofistica, pregando o relativismo, tentando o monopólio do saber autêntico, opondo a lição desses dois livros divinos, a Bíblia e a Natureza, anunciando incompatíveis as exigências desses dois universos, o moral e o físico, fazendo contraditórios os ideais do santo

e do sábio, criando, enfim, a incomunicabilidade do tempo com a universidade, da Igreja com a cultura.

E assim surge a crise do mundo moderno. Filhos de nosso século, sofremo-la espiritual e fisicamente; ela suscita dramas interiores e sociais, dilacera-nos impiedosamente, criando, em nosso mundo interior, conflitos intelectuais e morais, e em torno de nós a insegurança social, a instabilidade política e a desordem econômica. Os homens dessa geração, sem rumos e sem certezas, esqueceram o segredo da fórmula cristã de realização da unidade do pensamento e da ação.

O caos social é apenas um reflexo do caos da consciência moderna.

Eminência é uma geração assim trabalhada pelas forças desintegradoras do neopaganismo, que soube, apenas, destruir o sonho medieval da unidade, que nesta cerimônia, homenageia Vossa Eminência. São, pois, inteligências nas quais colidem e se opõem idéias e valores, exigências e apelos múltiplos da vida. Elas registram, mas não harmonizam e integram os apelos da ciência e os da religião, os da liberdade e os da disciplina, os do progresso e os da tradição.

Nessa consciência moderna, permanecem ainda, falsamente, como incompatíveis e adversas a necessidade da adoração e a exigência da explicação; o anseio de ver e o de adorar; o de crer e o de explicar. Carente de uma sabedoria unificadora da vida e da cultura, nossa geração dolorosa e incerta sente a necessidade de superar essa crise de alma que se fez crise social.

Sentimos todos, que palmilhamos falsos caminhos. Temos, todos, a certeza de que algo está errado na vida moderna. E muitos, dentre os nossos contemporâneos, ainda guardam ouvidos para ouvir e entender a voz dos sinos das velhas catedrais e experimentam a nostalgia dos perdidos caminhos ensolarados pela luz do Evangelho, que trilharam felizes as gerações de vários séculos. E a intensidade do drama social compele-nos à busca de novos rumos ideológicos!

Eminência, não é mais o fanatismo islâmico que nos formula "ou crê ou morre", que nos obriga a uma urgente opção entre o caos e a ordem, entre a cultura e a barbárie: é o fanatismo materialista, que assim nos força a uma revisão de posições intelectuais, a uma retificação de velhos e falsos rumos teóricos e práticos.

A crise do mundo descristianizado culminou na gestação de uma ideologia atéia, de uma filosofia política que nos força a escolha entre a aceitação do seu credo absurdo e a demissão da vida. É o comunismo - esse mosaico em que se associam o patológico, o luciferino e o simiesco, é o comunismo que adverte a consciência moderna sobre a falsidade de seus caminhos.

Eminência, mestres universitários, voltados ao exame e ao estudo dos grandes problemas do espírito, não podemos ignorar nesta hora de opções decisivas e vitais em que sentimos a necessidade de um novo humanismo, de um humanismo integral, um fato que enche e ilumina a história desde há vinte séculos: o fato da Igreja. A consciência moderna volta a experimentar toda a sedução que nela se encena.­

Registrando sua existência sob o ponto de vista de suas rela­ções com a evolução do pensamento humano, um espírito genial, embora transviado da sabedoria cristã, assim o apreciou: "O catolicismo disse Augusto Comte, foi o maior fator do desenvolvimento intelectual da humanidade". E um outro mestre do pensamento moderno formulou este juízo que é menos o de um historiador que o da própria história: "A Igreja, observou Guizot, deu ao desenvolvimento do espírito humano no mundo moderno uma extensão e uma tensão e uma variedade que até então ele nunca houvera tido".

Eminência, esta civilização em crepúsculo, esta cultura em crise, que melancolicamente caracterizamos, aí está face à Igreja exatamente como um sedento diante de uma fonte de águas cristalinas. Este mundo em crise é uma pergunta aflita; a Igreja, a resposta tranqüilizadora.

Nunca talvez como hoje as circunstâncias históricas possibilitaram uma melhor evidenciação do valor humano e social da Igreja. Nela se encerram todos os bens e valores de que carecemos, nela es­tão as energias de ressurreição espiritual do homem contemporâneo. A Igreja é, em verdade, o ponto de encontro de dois mundos, o lugar geométrico para o qual convergem todas as linhas do pensamento e da ação. De Roma partem, nela passam, para ela se dirigem quase todos os itinerários do espírito, quase todas as avenidas da ação humana.

Nela a vida se concentra e se estrutura, se organiza e se dirige; nela a história se define, a inteligência se decifra e repousa na busca daquilo "que mister saber e sem o qual, como disse Goethe, tudo que se sabe para nada serve".

Na Igreja, o agir humano essencialmente finalístico e exigente e absoluto, canaliza-se, entra no seu leito profundo para fecundar e triunfalmente corre em direção ao oceano do Ser, em direção a Deus.

Na Igreja o homem, ser itinerante, acha enfim o seu roteiro. Ela possibilita e garante a conservação e a realização, na história, de todas as verdades descobertas pela razão, de todos os impulsos criadores, de todos os movimentos de autêntica expansão e enriquecimento da vida.

A Igreja eterniza e fecunda, seleciona e dirige a realização de tudo que a humanidade através dos tempos visionou de verdade, de beleza e de bem. Ela é, na história, uma miraculosa acumuladora das grandes energias do espírito.

Nela se organiza e atua enfim a consciência moral da humanidade. Nunca, antes da Igreja, o espírito se fez carne, se objetivou, se hipostasiou assim com o processo histórico. Nunca uma concepção do mundo e uma forma de vida se inseriram tão profundamente no tecido da experiência humana e se fizeram força que dura e que age. Força transfiguradora do homem e de suas criações.

Com a Igreja, em forma palpável, a história começa a ser um processo conduzido, torna-se uma história dirigida; uma criação do espírito e da liberdade. A Igreja modelou a Média Idade, trabalhou as mais sólidas estruturas da Idade Moderna e tudo, que não efêmero ou mórbido na história contemporânea, é obra de suas mãos ou dela recebeu as condições de sua realização.

Com ela surge a possibilidade de progresso. Ela deu consistência ontológica à história, que deixou de ser, sob o seu influxo, o simples registro de um devenir, de um puro vir a ser humano para se tornar a objetivação de um plano, de um esquema de organização da vida inspirado na imagem eterna do homem.

Só com a Igreja a humanidade deixa de ser uma realidade abstrata, um mero conceito, encontrando em Pedro e em seus sucessores, órgãos permanentes através dos quais ensina, educa, modela e dirige os homens. Tudo que é especificamente humano, assume na Igreja sua perfeição exemplar, sua forma eterna.

Mestra das disciplinas sociais, portadora das soluções eficazes, porque divinas, do problema das relações entre os homens, a Igreja lança sob todas as modalidades do fato social, as luzes de sua sabedoria e o influxo pacificador de sua ação normativa.

Sobre problemas de política, de economia e de direito, a Igreja construiu doutrinas e interpretações em que se conjugam agu­das visões da natureza dos fenômenos sociais com o realismo dos preceitos reguladores da conduta humana.

"Todo o Direito Internacional Público contemporâneo, no depoimento de um mestre dos internacionalistas norte-americanos - James Scott - é uma criação católica e latina".

A Igreja extraiu da mensagem evangélica toda uma soberba construção doutrinária, política e econômica sobre a questão social cujas soluções são a luz orientadora das mais equilibradas e sábias legislações do trabalho.

Detentora da solução divina do problema do destino, mestra infalível das disciplinas morais, a Igreja, assegurando a conservação moral do homem, tem sido e será a incomparável guardiã da nossa natureza indigente e enferma.

Eminência, é a essa sobre-humana organização, é a "esse bloco de força silenciosa", como a definiu Carlyle, é a essa Igreja que criou o ocidente, formou as universidades, modelou espiritualmente o Brasil e deu a este "o seu traço eterno", é a essa Igreja que se apresenta hoje, dentro de um mundo caótico, como a única portadora das disciplinas de salvação social que, precipuamente, queremos homenagear na pessoa ilustre de Vossa Eminência.

Mas, Vossa Eminência, por suas invulgares virtudes apostólicas, pelos seus méritos de publicista e de pensador cristão, pela sua magnífica ação incorporadora do proletariado nos quadros das forças construtivas do progresso nacional, e, como ímpar figura de condutor de homens, possui amplos títulos pessoais, para receber esta homenagem que lhe presta a Universidade de Porto Alegre.

Eminência, o mundo em crise, tudo espera da Igreja; o Brasil cristão confia na ação salvadora do catolicismo; confia em Vossa Eminência em seu fecundo labor de apóstolo e de patriota insigne.



1 Discurso do Prof. Armando Câmara, Magnífico Reitor da UFGS ao ser concedido o título de Doutor Honoris Causa ao cardeal D. Jaime de Barros Câmara.