I

O conhecimento do Direito

 

§ 1º. A ciência do Direito em sentido estrito

 

I. A ciência jurídica em sentido estrito, dogmática jurídica, ou conhecimento sistemático do Direito tem por objeto a manifestação positiva do Direito.

A diferença que existe entre Filosofia do Direito e Política Jurídica consiste em que a primeira trata dos valores do Direito e esta dos instrumentos que possibilitam a realização destes valores. O Direito Positivo é objeto da História do Direito e do Direito comparado, enquanto a existência e os fatos da vida jurídica são objetos da Sociologia e da Psicologia jurídicas. (Sobre o significado objetivo, veja-se, abaixo, II, 1).

II. O tratamento científico do Direito Positivo  desenvolve-se em três etapas: a interpretação, a construção e a sistematização.

 

1.      A interpretação jurídica busca o significado objetivo do Direito Positivo, quer dizer, o significado incorporado à norma jurídica em si mesma, não no sentido subjetivo, ou seja, relativo ao pensamento das pessoas que participaram de sua criação. Esta é a distinção que existe entre a interpretação jurídica e a interpretação filológica. A interpretação filológica é sempre um repensar algo anteriormente pensado (um conhecimento do conhecido, como disse August Böckh), enquanto a interpretação jurídica consiste em levar a reflexão cognitiva até um desfecho conseqüente. A jurisprudência, como ciência do Direito, é, assim, uma ciência prática que busca dar uma resposta imediata a cada pergunta jurídica, sem poder esquivar-se alegando a existência de lacunas, contradições ou ambigüidades da lei. Ela precisa conhecer e entender as leis melhor do que as próprias pessoas que participaram de sua elaboração e deve extrair da lei mais do que estas pessoas conscientemente nela puseram ao redigi-las ou aprová-las.

 

2.      A construção jurídica segue a mesma metodologia da construção matemática, técnica, gramatical ou histórica: a reestruturação de cada instituto jurídico a partir de suas partes, previamente separadas pelo pensamento, ou seja, a síntese dos resultados da análise realizada. Ela é a comprovação da ausência de lacunas e contradições nas normas relativas a determinado instituto jurídico. Exemplificando: os fatos sancionados pelo Código Penal visam à proteção de um bem jurídico que determinada lei penal pretende proteger; a circunstancia de fatoabuso de confiança” constrói-se como o emprego abusivo de um poder jurídico de disposição ou como a violação de uma relação de confiança. A construção jurídica opera-se, a mais das vezes, a partir de determinados fins jurídicos (construção teleológica), todavia, existem também construções jurídicas não teleológicas como, por exemplo, a construção do processo como relação jurídica de desenvolvimento gradual.

 

 

3.      Finalmente, enquanto a construção jurídica examina cada instituto jurídico especificamente, a sistemática jurídica examina a ordem jurídica sob seu aspecto geral ou universal: a evolução de cada norma concreta que a integra ou alguma de suas partes, enquanto idéia específica.

 

III.               Existem, portanto, de acordo com o que foi acima exposto, duas espécies de conceitos jurídicos:

 

1.      conceitos juridicamente relevantes, ou seja, aqueles dos quais se parte para construir as circunstâncias integrantes da base de fato das leis, como, por exemplo, subtração, coisa móvel alheia e intenção de apropriar-se, no caso do furto. Eles não são criados pela ciência jurídica, pois esta os recolhe de outras áreas do conhecimento ou da própria vida, embora sem deixá-los intactos, uma vez que lhes atribui por vezes maior rigor, sob o ponto de vista restrito ou amplo, segundo o caso, e outras vezes transforma-os para efeitos jurídicos, como ocorre, por exemplo, com o conceito de posse, tão diverso quando empregado em sua acepção usual ou em sua acepção jurídica.

 

2.      conceitos jurídicos genuínos, conceitos realmente jurídicos, ou seja, aqueles cujo conteúdo é utilizado para a construção do objeto das proposições jurídicas: a eles pertencem os conceitos dos diversos direitos subjetivos, dos deveres jurídicos, das relações jurídicas e dos institutos jurídicos. Eles procedem diretamente do Direito Positivo (como o conceito de compra e venda e de hipoteca) ou logicamente do conhecimento científico do Direito Positivo e são as ferramentas cuja utilização é necessária à compreensão cientifica do Direito Positivo. Não pertencem, portanto, a nenhum Direito Positivo em particular, mas valem para todo Direito possível. Não se trata de normas jurídicas concretas ou de normas de Direito Natural, mas sim de conceitos puramente formais; não correspondem a respostas com validade universal a respeito de questões práticas do Direito, mas apenas a pergunta que podemos e devemos formular em relação a qualquer Direito, para poder reconhecê-lo como tal. Tais conceitos jurídicos apriorísticos, tais categorias do conhecimento jurídico incluem, por exemplo, os conceitos gerais de direito subjetivo e dever jurídico, de conduta conforme ou contrária ao Direito, de Direito Público e Direito Privado. São conceitos a prioricomo todos os conceitos jurídicos geraissão objeto do que se denomina a Teoria Geral do Direito (vide, em especial, a obra de Adolf MerkelEnciclopédia Jurídica, de 1885). No período do positivismo, a Teoria Geral do Direito foi considerada como substitutiva da Filosofia do Direito, como a Filosofia do Direito Positivo.

 

BIBLIOGRAFIA:

Radbruch, Arten der Interpretation (Formas de Interpretação) – em Recueil d’études sur les sources du droit em honneur de Fr. Gény (Estudos sobre as Fontes do Direito, em homenagem a Fr. Gény), vol. 2; Klassenbegriffe und Ordnungsbegriffe in Rechtsdenken (Conceito de Classes e de Ordem no Pensamento Jurídico), em Zeitschrift für die Theorie des Rechts (Revista sobre a Teoria do Direito), ano 12, 1938.

 

 

 

 

 

 

§ 2º. A História do Direito e o Direito Comparado

 

I.                    A História do Direito tem por objeto a realidade, a evolução e a eficácia do Direito. Pode limitar-se apenas ao estudo da evolução imanente do Direito, mas pode também investigar sua interação com outras manifestações culturais, ou buscar compreender seu significado histórico na cultura de determinada época.

 

II.                 Enquanto a História do Direito tem como objeto a sucessão dos fenômenos jurídicos no tempo, o Direito Comparado ocupa-se com o relacionamento das diversas ordens jurídicas nacionais, em uma determinada época. Normalmente, a comparação dos ordenamentos jurídicos de povos civilizados é feita sob perspectiva política. Veja-se a monumental obra em 15 volumes Vergleichende Darstellung des deutschen und ausländischen Strafrechts – Vorarbeiten zur deutschen Strafrechtsreform – (Exposição Comparada do Direito Penal Alemão e EstrangeiroTrabalhos Preliminares para a Reforma do Direito Penal Alemão). Por sua vez, o Direito Comparado, comociência etnológica do Direito”, como pesquisa relativa ao Direito dos povos primitivos, tem como objetivo construir, com fundamento nestes dados primitivos, a pré-história do desenvolvimento do Direito dessas civilizações; assim enfocado, o Direito Comparado desemboca na História Universal do Direito (Montesquieu, Esprit des lois – O Espírito das Leis, 1748; Feuerbach, 1775-1833; Henry Sumner Maine, 1822-1888; Joseph Kohler, 1849-1919; vide Radbruch, Schweizerische Zeitschrift für Strafrecht, Revista Suíça de Direito Penal, vol. 54, 1940, pág. 22 e segs).

 

III.               A História Universal do Direito pretende estabelecer determinados tipos de processos históricos universais, dentre os quais:

 

1.      Do comunismo primitivo à propriedade privada.

2.      Do matriarcado à família patriarcal, da endogamia à exogamia (por rapto ou compra), da poligamia à monogamia (J.J. Bachofen, Fr. Engels, A. Bebel).

3.      Do status ao contractus (Henry Sumner Maine), ou seja, de um sistema jurídico fundado no status das pessoas a um sistema jurídico construído  sobre o contrato, sobre a livre disposição de vontade dos indivíduos.

4.      Da “comunidade” à  “sociedade” (Ferdinand Tönnies), isto é, das formas de convivência totalitária e orgânica  às formas atomísticas e individualistas.

5.      No Direito Penal, a evolução da vingança do clã à pena pública (Theodor Mommsen e outros, Zum ältesten Strafrecht der Kulturvölker – O Direito Penal Primitivo dos Povos Civilizados, 1905; vide também Radbruch, Elegantiae juris criminalis, 1938, pág. 1 e segs).

 

A História Universal do Direito pretendeu, em certos momentos, substituir a Filosofia do Direito (vide Kohlers, Neohegelianismo).

 

§ 3º. A Sociologia Jurídica

 

I.                    Diferentemente da História do Direito e do Direito Comparado, que tratam de uma ou diversas ordens jurídicas, de situações jurídicas e da evolução do Direito, a Sociologia Jurídica pesquisa as leis gerais e os processos típicos da evolução do Direito e a vida regida pelo Direito na sociedade. (Desta forma, podem enquadrar-se também na Sociologia Jurídica os processos evolutivos da História Universal do Direito apontados no parágrafo anterior).

 

II.                 Entre as teorias da Sociologia Jurídica destaca-se como significativa a concepção materialista da história fundada por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Segundo Karl Marx, a estrutura econômica da sociedade forma “a base real sobre a qual se apóiam a superestrutura jurídica e política a que correspondem determinadas formas sociais de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida político-jurídica e da vida do espírito em geral”. Ao modificar-se a base econômica, “movimenta-se, lenta ou rapidamente, a imensa superestrutura erigida sobre ela. (Qualificam-se as idéias, enquanto desta forma socialmente condicionadas, de ideologias.) A teoria materialista da história é inversa, em relação à concepção de Hegel, segundo a qual toda evolução segue a evolução do espírito. Para este, o ser depende da consciência, o que equivale, para Marx , a “colocar as coisas de cabeça para baixo”. Marx pretende “colocá-las novamente sobre os pés”, ao conceber a consciência como derivação do ser. Identifica, no entanto, “o ideal com o material transferido para a mente humana e por ela traduzido”, o que importa admitir que o ideal, por exemplo o Direito, é sempre distinto do material: não se trata de uma questão de mera aparência, mas da transposição ou tradução do material sob nova forma, sob determinada forma cultural que é a forma jurídica. Friedrich Engels reconheceu mais tarde que tanto ele quanto Marx “desdenharam o aspecto formal do problema em relação ao conteúdo”. Reconheceu que o Direito, apesar de sua dependência da Economia, rege-se, em certa medida, por leis específicas e admitiu tambémque fatores históricos, apesar de criados por outros que são sempre, em última instância, fatores econômicos, reagem e podem repercutir sobre o meio e sobre suas próprias causas”. Apesar da autonomia do Direito, há possibilidade de os fatos jurídicos interagirem com os econômicos. Somente emúltima instância”, conforme Engels, as idéias, por exemplo, o pensamento jurídico, podem ser reduzidas a causas econômicas. Quando se acrescenta que a concepção materialista da história não pretende ser elevada a um dogma apriorístico, mas constitui apenas um método ou hipótese de manifesta fecundidade, fica ela reduzida a seu real significado.

 

Notável exemplo de interação, entre causas econômicas e Direito, encontramos na evolução da liberdade de coalizão. Em sua ascensão, a burguesia lutou, em seu proveito econômico, pela liberdade de associação. Lutou por esta liberdade e instaurou-a sob a forma de direito, isto é, sob forma universal, como liberdade para todos. Esta configuração jurídica fez com que a liberdade de associação, originalmente um interesse econômico da burguesia, beneficiasse também o proletariado e lhe proporcionasse, sob a forma da livre associação sindical, um instrumento de luta contra a burguesia, que em seu interesse a havia instituído. Assim, neste caso, a forma jurídica repercutiu sobre a Economia, quando pretendera apenas servir-se dela (vide Radbruch, Klassenrecht und Rechtsidee – O Direito de Classe e a Idéia de Direito em Zeitschrift für soziales Recht Revista de Direito Social, 1929).

A obra jurídica mais valiosa relativa à concepção materialista da história é o livro de Karl Renner, Die Rechtsinstitute des Privatrechts in ihrer sozialen Funktion (As Instituições do Direito Privado em sua Função Social), 1929. O materialismo histórico foi criticado principalmente por Rudolf Stammler, para quem nenhuma ordem econômica é concebível sem forma jurídica, portanto o Direito não pode ser apenas um produto da Economia.

Exemplo inverso relativo à influência da idéia sobre a Economia é proporcionado por Max Weber (1864-1920) em seu famoso estudo Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus – A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

III.               Também a Sociologia Jurídica pretendeu, na época do positivismo, ser considerada como Filosofia do Direito (Paul Barth, Die Philosophie der Geschichte als Soziologie – A Filosofia da História como Sociologia).

 

§ 4º. A Psicologia Jurídica

 

As causas sociológicas podem atuar sobre o homem através de seu psiquismo. A psicologia da ilicitude, especialmente a psicologia criminal, está muito mais desenvolvida do que a psicologia do Direito, única que nos interessa neste trabalho. É necessário distinguir aqui a psicologia do Direito Subjetivo em relação à psicologia do Direito Objetivo e do julgamento judiciário.

I.                    Ao definir-se direito subjetivo como interesse juridicamente protegido, são reunidos dois poderosos fatores que, fora dele, são sempre hostis: o próprio interesse e a consciência de aprovação jurídica e moral, a consciência do dever moral, pois, segundo Ihering, a luta pelo próprio Direito constitui um dever moral de auto-afirmação. Sentimento jurídico e consciência encontram-se psicologicamente em contradição: enquanto a consciência atrela-se ao egoísmo, o sentimento jurídico liberta dele. Por isso um e outro se personificam em caracteres essencialmente diversos: são evidentemente distintas as personalidades nas quais predomina a consciência e aquelas nas quais prevalece o sentimento jurídico: o homem doce e o colérico, o bom e o poderoso, o santo e o herói, a ovelha e o bode. Uns personificam o “tipo angustiado”, outros o “tipo colérico” (Kornfeld, na Zeitschrift für Rechtsphilosophie – Revista de Filosofia do Direito – vol. I, págs. 135 e sgs). O sentimento jurídico, em grande medida, corre os perigos da hipocrisia e da ilusão: o egoísmo, a inveja e o despeito, a teimosia, a mania litigante e a ânsia pelo poder, o espírito de vingança e a perversidade, disfarçam-se como sentimentos jurídicos. O sentimento jurídico inclina-se também à exaltação patológica, à psicose querelante. Ele está freqüentemente ligado ao aspecto individual e descuida-se da generalização do caso concreto, essencial ao Direito. Acima de tudo, toma como seu objeto um Direito fictício, nem sempre real. Finalmente, à lição de Ihering relativa à obrigação incondicional de lutar pelo Direito, deve-se opor que não somente o “bom direito” tem valor para o homem, mas também a “amada paz” (conf. Riezler, Das Rechtsgefühl – O Sentimento Jurídico – 1928; Hoche, Das Rechtsgefühl – O Sentimento Jurídico – 1932; Radbruch na Zeitschrift Die Tat – Revista O Fatojulho de 1914.)

 

II.                 A obediência ao Direito Objetivo resulta de vários motivos: o temor em relação ao castigo, a previsão da penalidade, o interesse pessoal, a imitação, o hábito, o sentimento de ordem e de coletividade, a lealdade em relação ao  poder estatal, a consciência e, por fim, também o sentimento jurídico.  A obediência não decorre de um generalizado conhecimento popular do Direito, mas, muito mais, do fato de que é dado um cheque em branco (semelhante à “ implícita” dos teólogos) à vontade do Estado. Nenhuma ordem jurídica perdura, todavia, se não houver no povo ao menos um grupo selecionado que conhece o Direito e espontaneamente o reconhece como obrigatório: os juristas. (Vide Franz Klein, Die psichologischen Quellen des Rechtsgehorsams – Os Fundamentos Psicológicos da Obediência Jurídica – 1912).

 

III.               Diferentemente da obediência popular ao Direito, o julgamento judiciário embasa-se geralmente no conhecimento do Direito e na sujeição a ele. Mas também na psicologia do Juiz podem misturar-se motivos subjetivos incontroláveis que justificam as críticas à Justiça classista. Não se trata aqui de consciente deturpação do Direito, mas de influência inconsciente, decorrente do fato de o Juiz integrar a burguesia ou os segmentos mais cultos da sociedade. A forma de vencer esta influência consiste em reconhecer abertamente tais motivações, como se dá na Justiça do Trabalho, que coloca, ao lado de Juízes profissionais, Juízes paritários classistas, representantes de empregados e empregadores, evidenciando, com tal diversidade, o conflito das classes. O “movimento realista”, na ciência jurídica norte-americana, preocupa-se em descobrir, de forma científica, a motivação das decisões judiciárias, principalmente a influência de motivos não objetivos; baseia-se na afirmação do famoso Juiz da Corte Suprema, O. W. Holmes, segundo a qual a ciência do Direito não é senão a previsão daquilo que os tribunais decidirão no caso concreto. (Vide Angela Auburtin, Ztschr. F. ausl. Öffl. Recht Revista de Direito Público Estrangeirotomo III, 1932, págs. 529 e sgs).

 

IV.              Também a Psicologia Jurídica pretendeu ser reconhecida como verdadeira Filosofia do Direito. Vide Petrazycki, Über die Motive des Handelns – Sobre a motivação da Conduta – 1907.

 

§ 5º. Rudolf v. Ihering (1818-1892)

 

Rudolf v. Ihering merece ser aqui destacado porque em sua obra estão reunidos todos os temas da ciência jurídica do século XIX e porque estes temas apontam para o desenvolvimento futuro de uma nova Filosofia do Direito.

Em Geist des römischen Rechts (O Espírito do Direito Romano) de 1825 e sgs., preocupa-se ele honestamente com a missão da Escola Histórica, de encontrar o Direito no “espírito do povo”. O espírito do povo romano, todavia, é retratado por ele de forma pouco romântica, como um egoísmo disciplinado e decidida atuação.

Sua exposição Der Kampf ums Recht (A Luta pelo Direito), de 1872, e sua obra Der Zweck im Recht (O Fim no Direito), de 1877 e sgs. estão marcadas pelos motes: “deves afirmar teu direito lutando” e “o fim criador de todo o Direito”. Enfrentar lutas e conflitos interiores foi sempre uma característica existencial de Ihering. Antes que declarasse que todo o Direito é uma criação consciente da idéia de fim, havia criticado acerbamente esta teoria, apontando suas limitações. Em uma edição póstuma da Enciclopédia Jurídica de Falk (1851), pág. 288, escreveu ele: “No mundo moral não predomina exclusivamente o princípio de finalidade. Ao lado das normas e instituições jurídicas, que neste princípio se fundam, há outras que não perseguem fim algum, mas são apenas resultados, emanações de concepções fundamentais da Moral ou do Direito, em conseqüência do que não podem ser apreciadas sob aquela medida; este erro foi cometido com muita freqüência no século XVIII e, por isso, não raramente, sem dignidade e profundidade, reduzido a .”

Em Scherz und Ernst (Brinquedo e Coisa Séria), de 1885, embora a parte essencial estivesse pronta em 1861, critica a “jurisprudência de conceitosque ele mesmo expôs no “Espírito do Direito Romano”, como uma ciência teleológica. Hoje, no entanto, podemos seguir claramente os passos e o momento de sua conversão à jurisprudência de conceitos, de inspiração teleológica (vide H. Kantorowicz, Deutsche Richterzeitung – Jornal do Juiz Alemão, 15 de janeiro de 1914). Consta do Digesto, 18, 4, 21, uma decisão do jurista Paulo, segundo a qual o vendedor de uma coisa duas vezes por ele alienada, que tiver sido destruída, antes da tradição, sem culpa de ninguém, pode exigir dos dois compradores o preço estipulado. Ihering inicialmente manifestou-se favorável a esta decisão. Mais tarde, confrontou-se com um caso concreto, semelhante ao tratado por Paulo. Tratava-se de dupla venda de participação em  um navio que em seguida naufragara. Em primeira instância, invocou Ihering a coincidência com o ponto de vista de Paulo e a questão foi julgada a seu favor, mas a decisão foi cassada em segunda instância. A Faculdade de Direito de Göttingen interessou-se pela análise da decisão. “Nunca, em minha vida – confessou então Iheringum caso judiciário causou-me tanta perplexidade (dizer embaraço seria pouco). Se os erros doutrinários merecem castigo, neste caso eu fui intensamente punido. De fato, uma coisa é, de forma puramente teórica, satisfazer-se com a norma jurídica apreendida a partir de sua fonte ou da pura Lógica, sem preocupação com as conseqüências e desgraças que ela pode causar; outra coisa é aplicá-la na realidade da vida. Uma concepção insana, quando a pessoa permanece sadia, não resiste a tal prova”. Ihering decidiu, então, a questão contra sua própria opinião anteriormente manifestada. Esta experiência serve, além disso, para evidenciar o mérito da análise de casos jurídicos, que obriga o jurista incondicionalmente a cotejar seus pontos de vista teóricos com a prática do caso concreto, ao contrário do Direito legalista, que se apóia somente em casos hipotéticos, gerados pela fantasia ou pela recordação.

De Ihering ficaram muitas sugestões: para o Direito Comparado e a Sociologia Jurídica, para o movimento do Direito livre e a jurisprudência do interesse, para a moderna Escola de Direito Penal de Liszt e a adoção de exercícios práticos no ensino jurídico universitário. Em um período de negação da Filosofia, após o esboroamento do sistema hegeliano, Ihering, apesar de prisioneiro do positivismo, foi precursor de uma renovação da Filosofia do Direito, que prosseguiria com Rudolf Stammler (Lehre vom richtigen Recht – Teoria do Direito Justo – 1902).

BIBLIOGRAFIA: Wieacker, R. v. Ihering, 1942.

§ 6º. A problemática da Filosofia do Direito

 

I.                    A História da Filosofia é a história de seus problemas, os quais estão sempre relacionados com aquilo que os homens, dentro do espírito da época, consideram suas preocupações mais sérias, mais profundas e fundamentais. Na época de predomínio das ciências da natureza, época do positivismo, cumpria à Filosofia integrar os recentes conhecimentos empíricos em um sistema sem contradições. A Teoria Geral do Direito, a História Universal do Direito e a Sociologia Jurídica foram, por isso, consideradas substitutivas da Filosofia do Direito ou até mesmo a própria Filosofia do Direito. A revolução de nosso sistema de valores faz com que hoje nos inclinemos fortemente a aceitar a Filosofia como conhecimento dos valores, como ciência do dever ser, que nos ensina, na Lógica, a pensar corretamente; na Ética, a proceder corretamente e, na Estética, a sentir corretamente. Em sintonia com esta concepção, a Filosofia do Direito é a teoria do Direito justo (Lehre vom richtigen Recht – Rudolf Stammler). Ela trata, pois, do valor e do fim do Direito, da idéia e do ideal do Direito, e tem seu complemento na Política Jurídica, que busca transformar esse Direito ideal em realidade.

 

II.                 As ciências empíricas ocupam-se do que é, do que foi e do que será; a Filosofia ocupa-e dos valores e do dever ser. As ciências empíricas estudam as leis da natureza, o que necessariamente ocorre; a Filosofia do Direito estuda o conteúdo valorativo das normas, o que deve ser, embora infelizmente nem sempre aconteça. Kant ensinou ser impossível deduzir os valores a partir da realidade, fundamentar o dever ser no ser, transformar leis naturais em normas.  A retidão de uma conduta não pode, então, estar embasada indutivamente em fatos empíricos, mas deve derivar, dedutivamente, de valores superiores, remontando, finalmente, aos valores supremos. O mundo dos valores e o mundo dos fatos coexistem em órbitas paralelas que não se interpenetram. Esta forma de relacionamento entre valor e realidade, entre ser e dever é denominada dualismo metodológico.

 

III.               A teoria do Direito justo foi designada, durante séculos, como Direito Natural. Na antigüidade, repousava ela no antagonismo entre natureza e convenção (Aristóteles); na Idade Média, na antítese entre Direito divino e Direito humano (Tomás de Aquino); na Idade Moderna, tem ela como base a contradição entre razão e ordem coativa (de Hugo Grotius a Rousseau). O moderno Direito Natural fundamenta seus postulados na teoria do contrato social, que não deve ser entendido como um fato real, mas como uma medida fictícia. Não deve ser considerado um contrato realmente celebrado, mas mera construção conceitual que avalia a retidão das ordens estatais e jurídicas: bons e justos são aquele Estado e aquele sistema jurídico que possam ser admitidos como resultantes da livre convenção dos cidadãos. O contrato social é uma forma individualista de pensamento jurídico, pois podem ser concebidos como resultantes de um acordo entre os indivíduos o Estado e o sistema jurídico que correspondam aos interesses individuais de cada um. Esta forma individualista de pensar o contrato social foi revolucionária a seu tempo; sob inspiração dela triunfou o direito individualista e a idéia de Estado na Revolução Francesa. Com o revés da época da Restauração, encerrou-se o período de predomínio do Direito Natural, que foi substituído pelo predomínio da Escola Histórica do Direito.

 

O Direito Natural, em seus três períodos, apresenta as seguintes características:

1.      é, como a natureza, como Deus e a razão humana, imutável e absoluto, em todos os tempos e lugares;

2.      é inequivocamente apreensível pela razão;

3.      não serve apenas como parâmetro para o Direito Positivo, mas também para substituí-lo quando este estiver em contradição com ele.

 

Por razões que serão mais tarde expostas (vide IV, infra), o Direito Natural não deve ser entendido como absoluto e imutável e sim como um Direito Natural de conteúdo variável (Naturrecht mit wechselndem Inhalt - Stammler). Até que ponto este Direito Natural pode ser objetivamente cognoscível e adequado, portanto, para ocupar o lugar do Direito Positivo, será analisado mais adiante (§§ 10, 12).

IV.              A Filosofia do Direito fundamenta-se, em parte, na natureza humana e, em parte, na natureza das coisas; em parte, sobre a idéia de Direito e, em parte, sobre seu conteúdo. A natureza humana é o fator constante, a natureza das coisas é o fator variável da Filosofia do Direito.

 

1.      Sobre a natureza humana repousa a idéia de Direito. Como a essência do homem é a razão, a idéia de Direito apoiada na razão tem, como esta, validez universal, mas (segundo Kant) puramente formal, incapaz, portanto, de extrair de si própria uma ordem jurídica, como pretendeu fazer o Direito Natural.

 

2.      A natureza das coisas, conceito surgido na antigüidade, foi transformada em centro de interesse por Montesquieu. Seu livro “O Espírito das Leis” (Esprit des lois) inicia-se com estas palavras: “As leis são relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (sobrenatureza das coisasvide Radbruch, Rechtsidee und Rechtsstoff in der Kant-Festschrift – A idéia de Direito e o conteúdo jurídico, na comemoração do jubileu de Kant, em Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie – Arquivos sobre a Filosofia da Economia e do Direito – 1924).

 

a)      Coisa, na expressãonatureza das coisas”, significa a matéria prima, o material do Direito, os “dados reais da legislação” (Eugen Huber, Zeitschrift für Rechtsphilosophie – Revista de Filosofia do Direitotomo I, pág. 39 e sgs.), em suma, os fenômenos naturais, sociais e jurídicos que o legislador encontra e que são submetidos à sua regulamentação. Constituem matéria do Direito, em primeiro lugar, os fatos naturais, desde a queda da maçã através da cerca, importante para as relações de vizinhança, até a rotação da terra sobre seu próprio eixo e em torno do sol, com relação à qual são estabelecidos os prazos e termos jurídicos. O progressivo domínio da natureza pelo homem e a evolução tecnológica criam novos materiais e, em conseqüência, novas questões jurídicas. Naturais são também as formas de convivência quod natura omnia animalia docuit: maris atque feminae coniunctio, liberorum procreatio et educatio (aquilo que a natureza ensinou a todos os animais: união entre macho e fêmea, procriação e educação dos filhos (Ulpiano, D. 1, 1, 3 ). Mas as rotações da terra não são suficientes para calcular juridicamente o tempo, senão através da regulamentação resultante da convenção  sobre o calendário. Da mesma forma, as relações naturais entre os sexos diferentes e a procriação não são imediatamente conteúdo material do Direito, senão a partir das formas de manifestação social que seu núcleo natural determina: monogamia ou poligamia, matriarcado ou patriarcado. Os dados naturais indicam as pré-formas sociais das relações jurídicas e servem como matéria para a regulamentação das relações humanas pelo hábito, a tradição, o uso, a prática, o costume. O legislador encontra, por exemplo, no dia-a-dia da existência, tipos de negócios que transforma em material para o Direito das Obrigações, encontra em seguida entidades coletivas como a comunidade e a igreja, que exigem ser reconhecidas como pessoas jurídicas. Encontra também atos anti-sociais, repudiados pela consciência do povo, e reclama, para eles, proibição e punição, assim como maus costumes, relativamente aos quais está certo de que não pode lutar porque (como ocorria com o duelo até pouco tempo atrás) estão protegidos pela força do reconhecimento de um costume social. Estas formas embrionárias de regras jurídicas ultrapassam sem dificuldade a fronteira do Direito costumeiro e levam consigo um terceiro grupo de fatos que passam a constituir matéria jurídica: as relações humanas implicitamente reguladas. Quando se fala em relações econômicas como matéria de Direito, pensa-se, necessária e simultaneamente (como Stammler em sua crítica à concepção materialista da história), em sua regulamentação jurídica. A influência da Economia sobre a estrutura das leis é também, em verdade, a influência de uma situação jurídica existente sobre a estruturação de formas jurídicas novas. O Direito vigente no momento em que se legisla influencia inelutavelmente o novo Direito, não somente através das normas transitórias e dos direitos adquiridos; sem dúvida, não é a mesma coisa instituir um Direito novo sobre o Direito vigente e edificar um novo Direito sobre terreno não construído; é o que se dá, por exemplo, com as discussões sobre a abolição da pena de morte com base em um sistema jurídico que a reconhece como válida ou com base em um sistema jurídico no qual ela sempre foi estranha. Quando se considera “coisatambém o sistema jurídico vigente, a “natureza das coisas” revela-se, ao mesmo tempo, um elemento histórico, tradicional, conservador da Filosofia do Direito e da Política Jurídica.

 

b)      Até aqui, tratamos de “coisa”. Na expressãonatureza das coisas”, “natureza”, em sentido objetivo, corresponde à essência, apreendida a partir da estrutura das relações humanas em si mesmas. Corresponde à resposta à pergunta sobre como esta relação existencial, assim estruturada, pode ser pensada como realização de determinada idéia de valor.

Até que pontoem aparente contradição com o dualismo metodológico – tem sentido a idéia de valor de uma relação humana, como determinante do Direito justo?

                A natureza das coisas revela-se decisiva, em primeiro lugar, como possibilidade de converter uma idéia jurídica em realidade. Neste sentido, natureza das coisas significa a resistência que a realidade bruta do mundo opõe às idéias jurídicas mais ou menos incômodas e sua concretização (ratione temporum habita). Perguntado se havia dado a seus cidadãos as melhores leis que se poderia imaginar, respondeu Solon: “Simplesmente as melhores, com certeza não, apenas as melhores para as quais eles estavam capacitados”. A Filosofia do Direito, que desemboca na Política Jurídica, é, como a Política, a “arte do possível”. Amo-o por ser impossível, não pode ser elevado a lema da Filosofia do Direito e da Política Jurídica.

 

                Mas a natureza das coisas não se revela apenas como obstáculo à realização das idéias jurídicas; ela é também importante na gênese do pensamento jurídico. Toda idéia jurídica traz consigo, necessariamente, as marcas do “clima históricoem que se formou e permanece quase sempre circunscrita, de forma inconsciente, às fronteiras do historicamente possível e assim vinculada à natureza das coisas.

 

                A importância da natureza das coisas para o legislador não decorre exclusivamente das exigências de realização do Direito ou dos limites históricos para a geração das idéias jurídicas, mas vincula-se à própria essência da idéia de Direito. Toda idéia de valor é definida para determinada matéria e, por isso, por ela determinada. A idéia de Justiça, por exemplo, é referida ao convívio e revela, em sua essência, de forma evidente, as normas de convivência. Como a idéia de uma obra de arte depende do material no qual deverá concretizar-se, variando, por exemplo, se for pensada para o mármore ou para o bronze, toda idéia de valor está ordenada a determinada matéria (Emil Lask) e as idéias jurídicas, em particular, estão essencialmente determinadas pela matéria jurídica, pela época, pelo espírito do povo, em uma palavra, pela natureza das coisas (“determinação material da idéia”).

 

A natureza das coisas serve para minimizar, sem eliminá-la, a dura tensão do dualismo entre valor e realidade, entre dever e ser. A idéia de Direito deve enunciar a última palavra relativamente à natureza das coisas, que se situa no campo do dado. A natureza das coisas enfrenta a idéia de Direito, exigindo uma estruturação sensata da matéria jurídica, deixando, porém, a decisão final para a idéia de Direito. Iurisprudentia est divinarum et humanarum rerum notitia, iusti et iniusti scientia (A ciência do Direito é o conhecimento das coisas divinas e humanas – natureza das coisas – , o conhecimento do justo e do injusto –  idéia do Direito).

 

BIBLIOGRAFIA: Radbruch, Rechtsphilosophie (Filosofia do Direito), 3ª edição, 1932; Sauer, Lehrbuch der Rechts- und Sozialphilosophie (Tratado de Filosofia do Direito e Sociologia Jurídica), 1929, págs. 5 e sgs.; Karl Petraschek, System der Rechtsphilosophie (Sistema de Filosofia do Direito), 1932; Giorgio Del Vecchio, Lezioni di Filosofia del Diritto, 3ª ed., 1936; Jennings,Modern Theories of Law (Modernas Teorias Jurídicas), 1932; W. Friedmann, Legal Theory (Teoria do Direito), 1945.