II

A idéia de Direito

§ 7º. A Justiça

 

I.                    A pauta axiológica do Direito Positivo, meta do legislador, é a Justiça, um valor absoluto, como a Verdade, o Bem e o Belo; um valor que repousa em si mesmo e não depende de nenhum outro.

 

II.                 Deve-se distinguir:

 

 

 

 

1.  Justiça como virtude e como qualidade pessoal (por exemplo, o Juiz justo), a Justiça subjetiva, de Justiça como propriedade do relacionamento entre pessoas (por exemplo, o preço justo), que é a Justiça objetiva. A Justiça subjetiva corresponde à intenção que conduz à realização da Justiça objetiva e está para ela como a veracidade está para a verdade. A Justiça objetiva constitui, portanto, a forma primária, enquanto a Justiça subjetiva é a forma secundária da Justiça. Neste trabalho, estamos interessados apenas

 

 

pela Justiça objetiva.

É preciso distinguir mais:

2.  A Justiça enquanto parâmetro do Direito Positivo – a juridicidade – da Justiça enquanto idéia anterior e superior à leiJustiça em sentido estrito. Aquela é a Justiça do Juiz, esta a Justiça do legislador. Apenas este último aspecto da Justiça interessa-nos neste trabalho.

 

III.               O cerne da Justiça é a idéia de igualdade. A partir de Aristóteles costuma-se distinguir duas formas de Justiça, cada uma delas plasmada sob uma diferente forma de igualdade: Justiça comutativa (justitia commutativa) significa igualdade absoluta entre prestação e contraprestação, por exemplo, entre mercadoria e preço, dano e indenização, culpa e pena. Justiça distributiva (justitia distributiva) significa proporcionalidade no tratamento dado a diversas pessoas, por exemplo, a diferenciação da carga tributária entre as pessoas em função de sua capacidade contributiva, a promoção das pessoas em função da antiguidade no serviço e o mérito. A Justiça comutativa pressupõe a existência de duas pessoas juridicamente equiparáveis; a Justiça distributiva, ao contrário, pressupõe no mínimo três pessoas: uma colocada em nível superior, que impõe encargos ou distribui benefícios a duas outras, a ela subordinadas. Quando consideramos o Direito Privado como aplicável a pessoas equivalentes e o Direito Público aplicável ao relacionamento entre pessoa de nível superior e seus subordinados, concluímos que a Justiça comutativa é própria do Direito Privado e a Justiça distributiva caracteriza o Direito Público. A equiparação jurídica própria do Direito Privado resulta de um ato de Justiça distributiva, porque, para que se possa aplicar a Justiça comutativa, é necessário admitir-se igual capacidade jurídica entre as pessoas que dela participam. Assim, a Justiça distributiva – o suum cuique, a cada um o seu – é a forma primária de Justiça e a Justiça comutativa é uma forma derivada de Justiça.

 

IV.              Embora a Justiça, sob sua dupla forma, seja, como o Bem, a Verdade e a Beleza, um valor absoluto, não derivável de outro que lhe seja superior, nem sempre a igualdade que nela está implícita apóia-se psicologicamente em motivação ética. A igualdade pode ser aspiração  dos invejosos, que almejam os mesmos favores dos privilegiados; dos despeitados, que pretendem o rebaixamento dos demais; dos perversos, felizes ao assistir a desgraça dos outros; dos vingativos, que desejam aos outros os mesmos males que sofreram. Por isso a realização da Justiça é, em realidade, um exemplo na “lista de idéias” (Hegel) que se utilizam da paixão para realizar-se.

 

V.                 A Justiça tem implícita uma tensão irresistível: sua essência é a igualdade; a universalidade é, portanto, sua formatodavia, ela busca sempre levar em conta o caso concreto, o indivíduo, sua singularidade. Esta Justiça voltada para o caso concreto, para a individualidade, é chamada eqüidade, uma busca que jamais se realiza completamente; uma Justiça individualizada é em si mesma contraditória, pois a Justiça se vale sempre de normais gerais. Sua universalidade reconhece graus e mesmo a especialidade se dá sempre de forma geral, aproximando-se sempre da individualização sem jamais alcançá-la por completo. A tendência à equidade na Justiça encontra por isso, na especialidade, apenas uma forma parcial, uma espécie de compensação entre a constante generalização e a completa individualização, como, por exemplo, na substituição da igualdade entre as pessoas, no Direito Civil, pela diferença entre empregador e trabalhador, entre empregado e funcionário, no Direito do Trabalho.

 

VI.              Justiça é uma idéia formal. A duas questões ela não responde; ao contrário, toma-as como pressupostos incontestáveis. Entendida como tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, não nos diz 1. quem deve ser considerado igual ou desigual, nem 2. como devem ser tratados os iguais e os desiguais. A igualdade resulta sempre de uma abstração da desigualdade existente, pois as coisas e os homens neste mundo são tão diferentes entre si comoum ovo em relação a outro ovo”. Se, por exemplo, dois agentes do mesmo delito devem receber a mesma pena por terem cometido o mesmo crime ou se devem ser tratados de forma diferente em função de seus antecedentes e sua periculosidade, é uma questão de igualdade ou desigualdade que precisa ser resolvida com base em considerações teleológicas, ou seja, antes que a Justiça possa prolatar sua sentença. Da mesma forma, é impossível derivar da Justiça a espécie e quantidade da pena. Ela pode determinar a proporcionalidade das penas dentro de determinado sistema penal, nunca estabelecer o sistema penal em si mesmo. Se a classificação das penas começa, em cima, com a mais grave delas, a pena de morte, e termina, em baixo, com uma indenização, ou se começa, em cima com a prisão perpétua e termina, em baixo, com multa mínima, são questões sobre as quais a Justiça nada tem a dizer. Ela pode apenas, dentro de uma escala dada, determinar a posição correspondente à periculosidade do agente. Apenas a forma da lei: a Justiça pode fazer com que aquilo que foi determinado como igualdade para todos seja realmente igual, revista-se da forma da universalidade. Nada pode dizer, no entanto, quanto ao conteúdo destas leis gerais, quanto a igualdade prescrita para os iguais.

 

VII.            Não significa negar que existam normas cujo conteúdo derive diretamente da justiça. Regras sobre a aplicação do Direito podem derivar diretamente da idéia de Justiça, mesmo quanto a seu conteúdo, como ocorre com as normas relativas à independência dos Juízes ou a proibição de aplicar pena definitiva sem proporcionar ao acusado oportunidade de defesa. São postulados de Justiça, revestidos de caráter absoluto como a própria Justiça. Mas a maioria das normas jurídicas recebe da Justiça apenas sua forma, que é a igualdade de tratamento de todos, a universalidade da regulamentação jurídica. Seu conteúdo deve ser determinado por outro princípio, decorrente  também da idéia de Direito: a finalidade.

 

BIBLIOGRAFIA: Giorgio Del Vecchio, La Giustizia (A Justiça), 3ª edição, 1946; Nef, Gleichheit und Gerechtigkeit (Igualdade e Justiça), 1941; Emil Brunner, Gerechtigkeit (Justiça), 1943; Radbruch, em Justice and Equity ( The New Commonwealth Institute Monograph), 1935.

 

§ 8º. A conformidade aos fins

 

I.                    Para que da Justiça decorram normas jurídicas, é necessária também a referência à adequação aos fins. Estesfins do Direitonão são empiricamente estabelecidos, mas devem ser entendidos com a idéia de fim, como o que deve ser. Enquanto o conceito de Justiça pertence à Filosofia do Direito, a idéia de fins do Direito deve ser buscada na Ética, disciplina dividida em duas partes: teoria dos deveres e teoria dos bens. Bens morais são valores, cujo conteúdo forma os deveres morais. Os fins do Direito podem estar referidos tanto aos bens morais quanto aos deveres morais.

 

II.                 A teoria dos bens morais distingue três espécies de valores, de acordo com a essência de seus portadores: titular do primeiro grupo é a pessoa individualmente considerada; do segundo, a pessoa jurídica; do terceiro, o bem de cultura. A partir da hierarquia dessas três espécies de valores, distinguem-se três sistemas de valores: o sistema de valores individualista, relativo ao valor da personalidade individual; o sistema de valores supra-individualista, relativo aos valores das pessoas jurídicas; e o sistema de valores transpersonalista, que tem a obra de cultura como supremo bem.

 

Formas de convívio correspondentes a cada um desses três sistemas de valores são: a sociedade individualista, a coletividade supra-individualista e a comunidade trans-pessoal. Para ilustrar esta idéia, devemos pensar a sociedade como relação contratual, a coletividade como organismo semelhante ao corpo humano e a comunidade criadora de bens de cultura como oficina na qual os agentes não se relacionam diretamente uns com os outros, mas sim indiretamente, através da obra comum. Os ideais dessas três formas de convivência humana são simbolizados por três palavras: liberdade, poder e cultura. O ideal individualista, a liberdade, gerou o partido político liberal e assumiu as formas democráticas e socialistas. Na concepção liberal, o valor da pessoa – matematicamente falando – é infinito, impossível de ser multiplicado, e está legitimado mesmo quando conflita com interesses majoritários, seja qual for a dimensão desta maioria. No pensamento democrático, ao contrário, a pessoa tem valor limitado, de tal forma que o valor pessoal da maioria prevalece contra o da minoria. Enquanto a democracia assegura ao homem apenas uma liberdade formal, jurídica, pretende o socialismo uma democracia material, ou seja, real – a liberdade econômica para cada um, sem se afastar do objetivo final individualista. A teoria supra-individualista, ou orgânica, ao contrário, dá fundamentação aos partidos autoritários ou conservadores, segundo os quais o Estado, o todo, não existe para seus membros, mas estes existem para o todo, de forma que os interesses do Estado são superiores até em relação aos da maioria dos cidadãos. A concepção transpessoal, finalmente, não influenciou a doutrina de nenhum partido político. Constitui-se, todavia, no único parâmetro para a avaliação tardia de povos desaparecidos, quando deles restaram apenas os valores culturais.

III.               A hierarquia dessas três espécies de valores não pode ser determinada de forma inequívoca e comprovada. Os fins e valores supremos do Direito variam não em função das circunstâncias sociais de cada povo e de cada época, como também subjetivamente em função de cada pessoa, do sentimento jurídico, da concepção do Estado, posição partidária, religião e visão de mundo. As decisões precisam ser tomadas pelas pessoas em consciência, a partir da interioridade de cada uma. A ciência deve limitar-se a apresentar esses três grupos de valores à deliberação individual. Para esta deliberação, contribui a ciência de três formas:

 

1.      desenvolvendo completamente, de maneira sistemática, os valores possíveis;

2.      expondo os meios capazes de realizá-los e as conseqüências desta realização;

3.      revelando as filosofias de vida pressupostas em cada posicionamento valorativo.

 

Este relativismo ensina a cada um, de três formas, não apenas o que ele deve fazer, mas também o que ele realmente quer, ou seja, aquilo que ele deve querer, se pretender seguir, de forma conseqüente, o que a lei prescreve.

IV.              O problema dos bens supremos, também em relação ao Direito, conduz-nos à resignação relativista. Da teoria sobre a essência universal do dever – uma vez que seu conteúdo deve ser sempre determinado – decorrem exigências absolutas para o Direito. É natural que o Direito não possa assumir a tarefa do cumprimento incondicional dos deveres éticos, pois este cumprimento é em essência questão de liberdade e, portanto, não pode ser imposto coercitivamente. O Direito não pode impor seu cumprimento, apenas possibilitá-los: o Direito é a possibilidade de cumprimento dos deveres éticos ou, em outras palavras, é um instrumento da liberdade exterior, sem o qual a liberdade interior –  essencial para a decisão éticanão pode existir. Garantir a cada um a liberdade exterior é, pois, a essência, a medula, dos direitos do homem. De onde se conclui que estes direitos têm caráter absoluto não porque decorrem de alguma manifestação de Direito Positivo, mas porque são indispensáveis ao cumprimento dos deveres morais. Assim se demonstra, de alguma forma, a necessidade do liberalismo, não para a democracia ou o socialismo, mas também para o autoritarismo. Por outro lado, não pode o liberalismo extrair de si mesmo um sistema jurídico e estatal completos, pois ele não é senão a modificação de alguma concepção estatal. Em toda teoria estatal há uma tensão fecunda entre liberalismo e democracia, entre liberalismo e socialismo, ou entre liberalismo e conservadorismo. A Justiça distributiva é chamada a decidir sobre a relação axiológica entre os direitos do homem e a totalidade supra-individualista do povo. Constituiria, no entanto, um Direito absolutamente injusto a negação dos direitos do homem, quer a partir do ponto de vista supra-individualista (“tu não és nada, teu povo é tudo”), quer do ponto de vista transpessoal (“uma estátua de Fidias compensa a desumanidade praticada contra milhões de escravos antigos” – Treitschke).

 

BIBLIOGRAFIA: Radbruch, Le relativisme (O relativismo) – em Archives de Philosophie du Droit, 1936.

 

§ 9º. A segurança jurídica

 

I.                    Colocada a questão sobre os fins do Direito a partir dos bens éticos, deveria terminar mesmo no relativismo. Uma vez que não se pode definir o que seja o Direito justo, torna-se necessário estabelecê-lo através de um poder capaz de impor o que foi estabelecido. É o que justifica o Direito positivo, pois a segurança jurídica pode ser obtida através da positividade do Direito. Assim surge, como terceiro elemento da idéia de Direito, a segurança jurídica.

 

II.                 Segurança jurídica não se confunde com a segurança que se obtém através do Direito, tal como a garantia de vida contra o assassinato e o rouboimplícita no conceito de fins do Direitomas refere-se à segurança do Direito em si mesmo, o que exige o implemento de quatro condições:

 

1.      que o Direito seja positivado, isto é, conste das leis;

2.      que ele seja seguro, isto é, esteja fundamentado em fatos e não confiado ao juízo de valor do Juiz no caso concreto, a partir de cláusulas gerais como “boa oubons costumes”; 

3.      que os fatos que fundamentam o Direito ofereçam possibilidade mínima de erro e sejam praticáveis, para o que, por vezes, torna-se necessário aceitar suas manifestações, isto é, substituí-los por suas manifestações exteriores, como, por exemplo, determinar a capacidade de ação não a partir da maturidade psíquica do agente, mas sim a partir de determinado limite de idade igual para todos;

4.      finalmente, o Direito Positivopara que haja segurança jurídicanão deve ser facilmente mutável, não deve estar sujeito a uma legislação oportunística que possibilite dar forma de lei a cada caso concreto sem nenhuma dificuldade. É por isso que constituem garantias de segurança jurídica os “pesos e contrapesos”, a divisão de poderes e a cautela do aparelho parlamentar.

 

III.               A segurança jurídica exige, portanto, a vigência do Direito Positivo. Mas a necessidade de segurança jurídica pode fazer também com que situações de fato se transformem em situações de Direito e até que, de forma paradoxal, o ilícito crie Direito. Puras situações de fato, como o status quo no Direito Internacional e a posse no Direito Civil gozam de proteção jurídica sem que necessitem estar apoiadas em algum fundamento legal. No usucapião e na prescrição, o decurso do prazo transforma uma situação ilícita em lícita. Em nome da segurança jurídica, para pôr termo a litígios, mesmo as sentenças injustas adquirem força jurídica e, em sistemas nos quais predominam os fatos e os precedentes, passam a ser usadas até como parâmetros para casos futuros assemelhados. Costumes originalmente contrários à lei transformam-se em Direito e podem inclusive impor sua validade contra a lei. A revolução, em si mesma alta traição, é crime enquanto não vitoriosa, mas, a partir da vitória, converte-se em fundamento de um novo Direito – é, outra vez, a segurança jurídica transformando o ilícito em Direito. Um governo revolucionário legitima-se ao demonstrar-se capaz de manter a paz e a ordem; por isso, no dia seguinte ao triunfo da revolução, costumam todos os governos revolucionários proclamar que irão garantir a paz e a ordem (comprometidas pela alta traição). A idéia de segurança jurídica leva, portanto, a terríveis paradoxos entre força e Direito: embora a força não seja superior ao Direito, quando vitoriosa, cria ela nova situação jurídica.

 

IV.              No Direito inglês, a idéia de segurança jurídica prevalece sobre os demais elementos da idéia de Direito, a ponto de um jurista inglês, Bentham (1748-1832) fazer-lhe verdadeiro panegírico: ela nos assegura a possibilidade de prever o futuro e preparar-nos para ele; é fundamento de nossos planejamentos, de nossos trabalhos e de nossa poupança; faz com que a vida não seja apenas uma sucessão de momentos, mas tenha continuidade; faz com que a vida de cada um se transforme em um elo, na cadeia das gerações; é a decisiva característica da civilização, distinguindo o civilizado do selvagem, a paz da guerra, o homem do animal. À sua vez, Jakob Burckhardt – “A segurança burguesa” – muitas vezes troçou, lembrando que momentos de grande florescimento foram carentes de segurança. É possível que, vivendo um longo e excepcional período de paz, entre 1871 a 1914, as pessoas tenham ficado cansadas da segurançamas nós experimentamos de forma suficiente exatamente o contrário e assim aprendemos a considerar a segurança jurídica um verdadeiro valor.

 

BIBLIOGRAFIA: Germann, Rechtssichereit (Segurança Jurídica), em Methodische Grundfragen (Questões Fundamentais sobre o Método), Basel, 1946.

 

§ 10º. A hierarquia das idéias de valor

 

I.                    Conforme foi demonstrado, as três idéias de valor devem complementar-se, a natureza formal da Justiça necessita da idéia de fins para adquirir significado da mesma forma que o relativismo exige a referibilidade a fins, a positivação e a segurança jurídicas. Mas, ao mesmo tempo em que as três idéias de valor se complementam, entram em contradição.

 

II.                 Quando se afirma que salus populi suprema lex est (a segurança do povo é a suprema lei), pressupõe-se que a única coisa que importa é a finalidade; contra isso, há quem responda: iustitia fundamentum regnorum (a Justiça é o fundamento dos reinos), é o fundamento de todo Direito; diz-se também fiat iustitia, pereat mundus (faça-se Justiça, ainda que o mundo seja destruído), ou seja, o Direito Positivo precisa ser respeitado, mesmo a custa dos demais valores jurídicos, e, ao mesmo tempo, admite-se que o Direito Positivo, exigido de modo incondicional, conduz à ilicitudesummum ius, summa injuria (o máximo de Direito leva ao máximo de injustiça). São antagonismos intrínsecos à idéia de Direito que exigem superação.

 

III.               De 1933 a 1945 (na Alemanha) preconizou-se que o Direito correspondia a tudo o que fosse útil ao povo. Acentuava-se, deste modo, de forma extremada, a idéia supra-individualista de finalidade – a incondicional exigência do bem comum e da força, a absoluta negação dos direitos individuais da pessoa. Foi, sem dúvida, um exemplo de superposição da idéia de fim à idéia de Justiça. Todavia, é a Justiça que deve solucionar o conflito entre individualidade e coletividade. Ela até precede a finalidade. Também a segurança jurídica é anterior à visão finalística, uma vez que esta não pode ser estabelecida com validade universal. Por isso, é impossível distinguir entre pretensos objetivos finalísticos e arbítrio. A natureza e o significado da segurança jurídica consistem, então, em estabelecer o Direito de forma absolutamente evidente em face das conflitantes concepções de finalidade.

 

IV.              Conflito definitivo se estabelece entre Justiça e segurança jurídica, uma vez que a idéia de segurança jurídica exige que o Direito positivo seja aplicado mesmo quando injusto; sua aplicação hoje e amanhã, a uns e outros, constitui um respeito à igualdade, que é a essência da Justiça; sob a perspectiva da Justiça, se o injusto é distribuído entre todos de forma igual, está restabelecida a Justiça, pois injusto seria o tratamento desigual. Integrando a segurança jurídica a forma da Justiça, o conflito entre esta e aquela é um conflito da própria Justiça consigo mesma, que não pode ser resolvido de forma inequívoca. Trata-se de uma questão de graus: se a injustiça do Direito positivo é tal que a segurança jurídica por ele garantida fica comprometida, ele deve ceder ante a Justiça. Em regra, porém, a segurança jurídica garantida pelo Direito positivo justifica a vigência dele, mesmo quando injusto: legis tantum interest ut certa sit, ut absque hoc nec iusta esse possit tão importante a certeza da lei que, sem esta, ela deixa de ser justa) – Bacon.

 

BIBLIOGRAFIA: Radbruch, Le but de Droit  (O fim do Direito), Annuaire de l’Institut de Philosophie du Droit, (Anuário do Instituto de Filosofia do Direito),1937/38.