IV

O Direito e outras formas de cultura

 

§ 13. Direito e Moral

 

A distinção conceitual entre Direito e Moral, Justiça e Ética, foi feita primeiramente por Thomasius e mais tarde por Kant. Sobre os valores morais, pode decidir a própria consciência, jamais a ordem jurídica, daí também a conseqüência prática segundo a qual as transgressões jurídicas não podem ser castigadas com penas infamantes.

I.                    A diferença essencial entre Direito e Moral está em que o primeiro tem como objeto as relações entre pessoas, enquanto a última tem como objeto a pessoa individualmente considerada. Por isso, os deveres jurídicos são sempre deveres de um sujeito de direito em relação a outro. A todo dever jurídico corresponde um direito subjetivo; existe dever jurídico porque alguém é titular de alguma faculdade de ação. O dever jurídico é dever e obrigação, enquanto o dever moral é pura e simplesmente dever, sem que ninguém possa exigi-lo. A natureza do Direito é, então, imperativo-atributiva e a da Moral puramente imperativa (Petrazycki, Über die Motive des Handels – Sobre os motivos do Comportamento – 1907).

 

II.                 Da natureza do Direito como ordenação do convívio humano parece seguir-se, em primeiro lugar, sua exterioridade, em oposição à interioridade da Moral, pois com comportamentos exteriores participa o homem do convívio. Em realidade, porém, preocupa-se também o Direito com a conduta interior; por exemplo, quando leva em conta a boa ou investiga dolo e culpa. A pena, concebida como segurança e correção, está voltada para as intenções e a personalidade do agente, das quais o comportamento externo é apenas necessário sintoma. A afirmação segundo a qual cogitationis poenam nemo patitur (ninguém pode ser punido por seus pensamentos) é somente exigência da “praticabilidade” da segurança jurídica, não conseqüência essencial do Direito. Embora, em regra,  a atitude interior somente quando corresponda a uma ação exterior produza conseqüências jurídicas, hipóteses existem nas quais a simples conduta interior as determina. Por exemplo, a educação correcional aplicada a menores pressupõe carência psíquica, da qual a conduta externa é apenas indício ou prova. Portanto, existe também umdireito interior” (como sustentava a escola krausista, principalmente Röder). Não se pode afirmar, então, que a exterioridade seja o objeto do Direito; ela é aquilo pelo que ele se interessa, pois um comportamento interior jamais é considerado por ele em si mesmo, apenas suas possíveis conseqüências. Ao contrário, a Moral está voltada para o comportamento externo apenas se e quando expressão das intenções do agente.

 

III.               Quando Kant fundamenta a obrigatoriedade do Direito em sua exterioridade, quando afirma que o Direito se satisfaz com o cumprimento exteriorizado (legalidade), quando entende que a obediência à lei é suficiente, qualquer que seja sua motivação e sem que seja necessário o respeito, limita-se aos fundamentos da segurança jurídica, não se referindo à essência do Direito. A esta legalidade, no campo jurídico opõe Kant a moralidade, como forma da obrigatoriedade moral; mas uma ordem jurídica que não relacione o cumprimento do dever ao sentimento de dever, estará fundamentada em bases muito frágeis e inseguras; realmente, de forma alguma, renuncia o Direito ao campo das intenções jurídicas; quando, por exemplo, a execução da pena busca a correção ou o Estado obriga a educação dos filhos, não está interessado apenas pelo comportamento ajustado ao Direito, mas também pelas intenções jurídicas.

 

IV.              Finalmente, não é correto opor a exterioridade das fontes de validade do Direito, sua heteronomia, à autonomia da Moral. Uma obrigação heterônoma é uma contradição em si mesma, pois não é a norma externa, enquanto tal, que obriga, e sim sua aceitação pela consciência. Heteronomia do Direito significa apenas que a consciência acolhe como próprio um complexo externo de normas, da mesma forma como a veracidade a orienta para a verdade segundo as leis da lógica. A obrigatoriedade, no entanto, bem como a validade de tal complexo de normas, podem fundamentar-se em sua aceitação pela consciência. Enquanto deveres autônomos são qualificados como morais, deve-se reconhecer que a obrigatoriedade do Direito, sua validade, fundamenta-se, em última instância, no dever moral do indivíduo (Cf. Laun, Recht und Sittlichkeit – Direito e Moralidade – Hamburgo, Oração do Reitor, 1924).

 

V.                 Ordens jurídicas podem ser elevadas a deveres de consciência porque servem a fins morais, a objetivos morais. A validade do Direito fundamenta-se na Moral porque os fins do Direito estão voltados para fins morais. foi demonstrado (§8) que, se o Direito não pode realizar incondicionalmente a Moral, porque esta é necessariamente obra da liberdade, ele a torna possível; Direito é o que possibilita a Moral e, naturalmente, ao mesmo tempo, o que  possibilita a imoralidade, dela se distinguindo, portanto, por seu conteúdo. Por isso pode Ihering sustentar a tese segundo a qual a luta pelo Direito é luta pela afirmação moral da própria pessoa, pela liberdade exterior, pressuposto necessário à liberdade interior, à liberdade moral; por isso a luta pelo Direito é, em si mesma, um dever moral.

 

O Direito, distinto da Moral, está, pois, a ela duplamente vinculado por seu conteúdo: ela é o fundamento de sua validade, porque um dos fins do Direito é possibilitar a moral.

BIBLIOGRAFIA: Nef, Recht und Moral Direito e Moral – 1937.

 

 

 

§ 14. Direito e Costume

 

I.                    A determinação do conceito de costume é necessária por dupla razão: a primeira, porque o Direito faz referência, inúmeras vezes, a “bons costumes” e “usos e costumes do lugar”; além disso, porque, sem tais referências, não emergiriam do costume conseqüências jurídicas, da mesma forma como, da cortesia internacional não decorrem obrigações para os povos.

 

II.                 Estabelecer a diferença entre Direito e costume é mais difícil do que entre Direito e Moral. As peculiaridades do Direito em relação ao costume não podem ser obtidas a partir da coação jurídica, uma vez que esta, embora seja conseqüência habitual do Direito, não integra sua essência e o costume, por seu lado, pode acarretar duros constrangimentos psíquicos, como ocorre no boicote social. Finalmente, é muito grande a diversidade de conteúdos no conceito de costume.

 

III.               Hábito” – “uso” – “costume”, esta seqüência corresponde à crescente revelação da normatividade a partir dos condicionamentos de fato que, projetados sobre a Moral e o Direito, superpõem-se ao próprio costume, possibilitando qualificá-lo de “bomou, ao contrário, de “mau costume”. O costume admite também avaliação estética que permite identificá-lo comelegância”. Nesta se incluem modos de comportamento não criados pelo hábito ou pelo uso, mas por convenções. Convenção não é costume do povo, mas costume de uma classe: as “boas maneiras”, ou sejam, os costumes da burguesia distinguem-se da “grosseriarústica e da “cortesia”, ou hábito da corte. O máximo da elegância é o “tato”, que está para as boas maneiras e para a cortesia como a eqüidade está para a Justiça; também ele aplica-se apenas ao caso concreto, não podendo ser previsto em regras e sendo apreensível apenas por intuição. Enquanto o costume do povo une, a convenção separa. Característica desta é que as pessoas “sabem o que deve ser feito”, como sugere a expressão “savoir faire”. No âmbito das convenções, ao contrário do que ocorre com a Moral e o Direito, a consciência da infração não incrimina o agente, até o alivia. Aquele que sabe o que deve ser feito em uma situação concreta pode, gentilmente, e até com graça, despreocupar-se com a decência, pois o fato de ser conhecedor do que deve ser feito torna-o membro do grupo dos autores destas regras. Naturalmente, os que integram as classes mais baixas procuram adequar-se às regras das classes superiores, o que obriga estas a constantemente desenvolverem, modificarem e refinarem suas convenções. Por isso, enquanto, no âmbito dos costumes de um povo, têm prioridade os “costumes mais antigos”, no âmbito das convenções predomina a “moda mais nova”.

 

IV.              Diversas são as formas de o costume social e o costume das classes sociais se relacionarem com Direito e Moral. O costume social corresponde a um momento evolutivo ultrapassado, no qual Direito e Moral se encontravam fundidos, não conceitualmente ordenados, mas em processo histórico de ordenação. Como Moral e Direito evoluíram a partir do costume social, havia nebulosa impossibilidade de diferenciá-los e era impossível obter saudável distinção conceitual entre eles. Ao contrário, as convenções, os elegantes costumes das classes sociais, desenvolvem-se, a partir dos costumes sociais, como reação consciente, ao lado do Direito e da Moral. Sendo um protesto consciente, manifestam-se as convenções através de um comportamento exteriorizado, exigindo, todavia, a correspondência a um comportamento interior valioso. Uma saudação cerimoniosa é considerada pela convenção como expressão de elevada consideração, mesmo quando esta, na verdade, não exista. O essencial da convenção é, assim, uma “mentira convencionalque ordena e permite tomar as aparências como realidades. Costumes sociais e elegância não se distinguem, portanto, conceitualmente, do Direito e da Moral, através de características claras, pois a diferenciação entre eles procede de uma situação de indiferença; depois que Direito e Moral se formam a partir dos costumes sociais, os costumes da elegância repousam sobre consciente contradição entre conduta externa e interna.

 

BIBLIOGRAFIA: Jhering, Zweck im Recht (O fim no Direito), t. II; Ferd. Tönnies, Die Sitte (Os costumes), 1909.

 

§ 15. Direito e Religião

 

I.                    Em primeiro lugar, é necessário determinar o campo específico da essência da religião na filosofia dos valores aqui exposta. Esta é, em si mesma, uma forma de avaliação – distingue o bem do mal, o belo do feio, o verdadeiro do falsoenquanto as ciências da natureza são caracterizadas por sua cegueira diante dos valores – registram os fatos sem preocupação relativa a seus valores – e as ciências da cultura praticam uma forma de observação dos fatos relacionada a valores – interpretam-nos levando em conta seu significado valioso. A religião, no entanto, coloca-se acima dos valores. Enquanto as ciências da natureza são cegas para eles, a consideração religiosa supera a contradição entre eles. Mas o que significa “superação de valores”?

 

II.                 O cristianismo estrutura-e sobre duas afirmações, uma do Velho e outra do Novo Testamento: “Deus contemplou sua obra e viu que todas as coisas eram boas” – e “para aqueles que amam a Deus, tudo é bom”. Para a religião, em última instância e apesar de tudo, todo ser é bom, uma vez que ela supera o conflito entre valor e desvalor, entre felicidade e infelicidade, e até redime o homem de sua culpa original (felix culpa). Por isso, a religião cristã é amor, superior a valor e desvalor; é graça, como um sol que brilha sobre o justo e o injusto; é paz, que sobrepaira à razão e seus problemas. O que não é essencialmente bom, não é; em sentido profundo, sua existência é apenas uma aparência. Duas atitudes são possíveis diante de qualquer fenômeno: considerá-lo valioso ou desvalioso, em sentido axiológico; ou considerá-lo essencial ou não, em sentido religioso.

 

III.               Esta visão dupla aplica-se também em relação ao Direito, que pode ser avaliado de um ponto de vista profano qualquer ou, sob o ponto de vista religioso, pode ser considerado sem valor. De fato, sob várias formas de apreciação cristã, em última instância, é negada sua essencialidade.

 

1.      A concepção dos Evangelhos caminha em direção a um significado absolutamente desvalioso para o Direito. Na parábola dos trabalhadores na vinha, é rechaçada, com gesto grandioso, a exigência de Justiça. O sermão da montanha considera sem importância sofrer injustiça, recomendando ao ofendido que ofereça a outra face ao seu agressor e, àquele de quem foi roubado o manto, que ofereça também sua túnica ao ladrão. Culmina, então, na mais sublime inversão de valores: a não resistência ao mal.

 

2.      A partir desta concepção, Rudolf Sohm o Direito Canônico como anticristão, porque estaria em contradição com o essencial da Igreja: a coação jurídica não força ninguém a viver sob orientação cristã e o formalismo jurídico não decide sobre a bem-aventurança eterna. Mais coerente que Sohm, Tolstoi estende esta crítica, feita ao Direito Canônico, a todo o Direito: as relações humanas devem ser reguladas exclusivamente pelo amor ao próximo, enquanto o Direito apenas se aproxima, de soslaio, da interioridade do comportamentoúnica que, finalmente, importa – pervertendo a Moral cristã ao atribuir aparente valor intrínseco ao comportamento exteriorizado. Sohm chega a um anarquismo sectário dentro da comunidade religiosa e Tolstoi postula o convívio anárquico para toda sociedade humana. Em última instância, o sermão da montanha é mais radical do que Sohm e do que Tolstoi, pois não atribui ao Direito valor anticristão, mas considera-o algo sem nenhum valor, algo que não merece sequer contestação.  (Sobre Sohm e Tolstoi, vide Hauck, em obra ainda no prelo).

 

3.      O vigoroso espírito de Lutero, ao contrário, satisfaz-se em justificar a insolúvel antinomia entre a necessidade de um Direito secular e sua insignificância religiosa. Assegura à Política e ao Direito transitória autonomia e , em particular, o Direito Canônico como assunto meramente humano, que considera um regimento interno, não soberano, da Igreja. Reconhece autonomia legal ao mundo do Direito e do Estado, em paralelo com o mundo religioso da , do amor e da caridade. Naturalmente uma autonomia transitória e problemática sob a qual deve-se viver como se não existisse, e na qual, a qualquer momento, pode irromper a religião como um incêndio ou um furacão. Esta ênfase no caráter profano do Direito, em sua acidentalidade e precariedade em relação à consistência do comportamento religioso, teve decisiva participação, de um lado,  na evolução do poder absoluto dos príncipes e, de outro, no desinteresse dos alemães pela Política, que, em razão de sua precariedade, não reconheciam apta a orientá-los como valor supremo da vida. Todos nós tivemos experiência sobre o risco de um Direito sem a consagração superior. Da mesma forma que o catolicismo sempre fez (e, entre as confissões evangélicas, o calvinismo), a igreja evangélica preocupa-se atualmente em dar fundamentação religiosa ao Direito.

 

4.      Na concepção católica, o Direito não integra a ordem da graça, mas da criação e, por isso, está, como tudo o que foi criado, sujeito à lei de Deus. Cristianismo e cristandade admitem a existência de uma estrutura hierárquica de classes e situações em cuja base ocupa seu lugar o Direito Natural, como algo que não é plenamente cristão nem plenamente anticristão. Também o Direito Positivo se beneficia do brilho dos valores religiosos, porque deriva de normas do Direito Natural, editadas por Deus e apreensíveis pela razão. Ao lado do ius divinum naturale está o ius divinum positivum, vigente, para a Igreja, a partir da revelação (v. § 20). À insignificância do Direito no sermão da montanha, ao anticristianismo do Direito em Sohm e Tolstoi, à precária autonomia do Direito em Lutero, opõe-se, assim, para os católicos, o reconhecimento de sua relativa essencialidade.

 

IV.              Imediatamente, o religioso emerge no mundo jurídico através de uma instituição: a graça, como tiveram que reconhecê-lo também os defensores da autonomia do Direito. Beccaria e Kant rejeitaram a graça, porque viam nela uma ruptura da autonomia jurídica. Mas outros procuraram ver seu significado essencialmente jurídico. Ihering considerou-a “válvula de escape do Direito”: serve para fazer valer o Direito contra a força do julgamento injusto; para fazer com que a Justiça prevaleça sobre o Direito; para que prevaleça a equidade no caso concreto e não a tendência generalizante da Justiça; para que a prudência estatal prevaleça sobre a regra jurídica. Desta forma, no entanto, tergiversa-se sobre o significado original de graça. Elanão conhece coação”, nem mesmo da Justiça; não se assemelha a planejamentos beneficentes estatais, mas à esmola consciente e irracional; ela é, no mundo do Direito, semelhante ao milagre no mundo da natureza. Seu significado consiste em chamar a atenção para o caráter limitado e condicional do Direito. Sua expressão mais pura não está na graça estatal, mas na não estatal, praticada por líderes espirituais, como faziam as abadessas medievais, autorizadas a indultar os pobres pecadores a caminho do patíbulo. Hoje, conhecemos uma forma secularizada e irracional de anistia, concedida ao ensejo de festas nacionais.

 

BIBLIOGRAFIA: Radbruch e Tillich, Religionsphilosophie der Kultur (Filosofia Religiosa da Cultura) 2ª ed., 1920; Radbruch, revista Evangelisch-Sozial, 1927; Grewe, Gnade und Recht (Graça e Direito), 1936.