V

As grandes culturas jurídicas

 

§ 16. O Direito Romano

 

Vamos analisar agora as mais significativas culturas jurídicas como tipos ideais, sob o aspecto da Filosofia do Direito, a começar pelo Direito Romano.

I.                    A particularidade do pensamento jurídico romano está, acima de tudo, em sua legislação específica ou, como afirmou a crítica, em suaautonomiaem relação ao espírito latino.

 

1.      O Direito Romano está isolado das demais categorias de normas como costume, Moral ou religião; entre os demais ordenamentos jurídicos, é aquele que recebeu a menor influência da religião.

2.      O juízo jurídico romano é rigorosamente autônomo relativamente à observação dos fatos – consideram-se separados o processo in iure e o processo in judicio.

3.      O Direito Romano está rigorosamente separado de seus fundamentos econômicos, bem como das funções econômicas. Ninguém pode formar uma imagem da vida ou do pensamento econômico dos romanos a partir de seu Direito.

4.      Separada está também a norma jurídica romana da vida jurídicasomente a partir da papirologia tornou-se possível conhecer, além do Direito Romano, a vida jurídica em Roma.

5.      Nenhum papel decisivo representam também as idéias suprajurídicas, filosófico-jurídicas ou de política jurídica.

6.      Finalmente, o Direito Privado Romano está rigorosamente separado do Direito Público. Sendo o Direito Romano fundamentalmente Direito Privado, é, em conseqüência, individualista e pode servir a uma ordem econômica capitalista, embora os institutos econômicos típicos do capitalismo, como a letra de câmbio, as ações, o cheque e as sociedades comerciais, sejam originários do Direito germânico.

 

Esta distinção entre o Direito Romano e o Direito germânico decorre menos da diferença de nacionalidades do que de uma diferença de graus de desenvolvimento. Em um estágio mais elevado da evolução, toda ordem jurídicapor razões de segurança jurídica – adquire autonomia.

II.                 Característica do Direito Romano é ainda a casuística de sua formação, é sua gênese a partir de situações jurídicas. Essencialmente, a lei aparece no começo e no final de sua evolução: a Lei das XII Tábuas e o Corpus Iuris. Entre estes, dá-se o extraordinário desenvolvimento da jurisprudência, fundada na natureza das coisas e no caso concreto. Apesar do casuísmo, caracteriza-se o Direito Romano pela economia das formas, a parcimônia das figuras jurídicas utilizadas, o emprego de formas jurídicas iguais para situações economicamente distintas, como ocorre em relação ao conceito de propriedade, utilizado para coisas móveis e imóveis. Essa tendência à generalização está associada, todavia, a evidente cautela contra abstrações, definições, construções e sistematizações. Ele prefere, às construções genéricas, o emprego de precedentes fáticos, “como se” o novo caso fosse igual ao anterior (ficções). A chamadajurisprudência regulatória” revela que o direito não procede da leiius ex regula – mas que a lei procede do direitoregula ex iure – apesar de que uma série enorme de princípios de forte significado tenha sido cunhada, e até acolhida, em larga escala, por exemplo, pelo Direito inglês.

 

III.               Resumindo, pode-se dizer que o objetivo essencial do Direito Romano não era suprajurídico, como o bem-estar ou a generalização da Justiça, mas a correta decisão do caso concreto, conforme a equidade, fundada, acima de tudo, na boa . Por isso, satisfazia-se o Direito Romano com menor grau de segurança jurídica do que estamos acostumados.

 

IV.              Paradoxo histórico: nos países que adotaram o Direito Romano, transformou-se ele em uma ciência para eruditos, enquanto nos países em que não foi adotado, como os anglo-saxões, prevaleceu um espírito jurídico análogo ao romano, baseado na natureza das coisas. Por isso o Direito Romano, depois de recebido, foi sempre contestado na Alemanha – pelos camponeses revoltados, na chamada revolução dos camponeses; pelos defensores da unidade e da liberdade do país, principalmente em 1848; pelos defensores do Código Civil Alemão e até pelos nazistas. Os germanistas, em sua luta contra o Direito Romano, não perceberam que, de um lado, a ele deve-se a unidade nacional do Direito, em substituição à multiplicidade dos Direitos regionais; de outro lado, sua recepção foi possível porque ele despiu-se de quase todas as peculiaridades nacionais para converter-se no ius gentium. Menos compreensível foi que, além dos defensores da unidade, também os defensores da liberdade, os liberais e os nacionalistas da época foram hostis a ele, embora o que o caracterizasse fosse exatamente a orientação individualista e privatista. Esta contestação estava voltada contra o Direito Público romano, que não havia sido recebido in toto, e contra o absolutismo bizantino. A resistência oposta pelo liberalismo foi dirigida menos ao Direito Romano do que ao quietismo reacionário de seus defensores de então: a Escola Histórica do Direito e o árido positivismo  no qual desembocou; contra, portanto, a volta não histórica a um Direito Romano puro, contra as tentativas de sua adaptação às exigências do momento – o chamado usus modernus pandectarum – contra as necessárias reformas e codificações. Enfim, em todas as suas formulações, a crítica ao Direito Romano era válida não em relação à jurisprudência clássica romana, mas em relação ao Direito bizantino escrito que chegou a nós através da recepção.

 

BIBLIOGRAFIA: Fritz Schulz, Die Prinzipien des römischen Rechts (Princípios de Direito Romano), 1934.

 

 

 

§ 17. O Direito anglo-americano

 

I.                    A Inglaterra não passou pela experiência da recepção do Direito Romano, embora este fosse ensinado em Oxford desde a época dos glosadores. , a classe dos juristas formou-se e organizou-se antes que isto ocorresse nos demais países, e desencadeou a luta contra a recepção, impedindo-a até, ao mesmo tempo em que assumia a tarefa de formar novos juristas, no lugar das Universidades. Mas isso não significa que o Direito Romano não tenha exercido qualquer influência na Inglaterra; impedida foi a recepção das normas específicas do Direito Romano, não a penetração de seu espírito. A respeito da influência do Direito Romano sobre a metodologia jurídica inglesa dá testemunho Melanchton: “Há na Europa povos que não decidem suas questões jurídicas de acordo com as leis romanas, mas fazem-no de acordo com suas próprias leis. Todavia, os encarregados das decisões costumam estudar as leis romanas no estrangeiro e, segundo estou informado, quando perguntados sobre os motivos deste esforço, uma vez que tais leis não são aplicadas por eles, respondem que procuram a alma e o espírito das leis romanas, isto é, buscam descobrir a força e a natureza da equidade, para poderem julgar de forma mais correta a partir de suas leis pátrias.” Assim o autor a influência do Direito romano sobre a equity, como modificadora da common-law.

 

II.                 Como o Direito Romano, a common-law inglesa descobre o direito no caso concreto, o “case-law”, extraindo-o da natureza das coisas. No Direito inglês, a leistatute-lawdesempenha papel restrito, na regulamentação parcial de determinados setores jurídicos. Diferentemente do que se passa no Continente Europeu, seus legisladores jamais pretenderam adotar a codificação geral do Direito em vigor. Também como o Direito Romano, o Direito inglês é feito pelos juristas (judgemade-law). Originalmente, os juízes ingleses apoiavam-se no Direito consuetudinário, um pretenso Direito geral inglês, em oposição aos costumes locais – daí a designação common-law. Mas, na verdade, não recorrem ao Direito consuetudinário, nem sob a forma de prática judiciária; a partir de precedentes, criam o Direito no caso concreto, com eficácia em relação a casos futuros da mesma natureza.

 

III.               O Direito inglês é obra dos juristas ingleses. A corporação dos juristas ingleses (Inns of court) reúne profissionais com formação universitária, a alta advocacia, os especialistas (barristers) autorizados a litigar no Poder Judiciário e os solicitadores (solicitors), encarregados da preparação, junto às partes, dos processos em tramitação. Deste corpo de advogados saem os juízes e o Ministro da Justiça. Sustentada por este conjunto, a autonomia do Direito, a “Rule of Law” torna-se, na Inglaterra, mais forte do que em qualquer outro lugar. Montesquieu até acreditava poder abstrair, a partir da vida jurídica inglesa, sua teoria da divisão dos Poderes. Segundo ele, ao juiz incumbe aplicar a lei e, para tanto, não necessita de “nada mais do que olhospara ler, enquanto a função de editar o Direito incumbe exclusivamente ao Parlamento. Na verdade, é mínima a aplicação da lei pelo juiz inglês, preponderando os precedentes judiciários, que ele completa e desenvolve, através da criação livre do Direito, enquanto o Parlamento faz uso de sua competência legislativa com sábia moderação em relação à common-law. Esta voluntária cautela do Parlamento e esta autonomia dos juristas asseguram a seriedade da aplicação do Direito e, com ela, o Estado de DireitoRule of Law – de forma muito mais segura do que a teoria da divisão dos Poderes de Montesquieu, confiando a elaboração desenvolvimento do Direito exclusivamente ao Parlamento.

 

IV.              Na medida em que a common-law foi se estruturando cada vez mais comoius strictum”, surgiu a necessidade de modificá-la, de transformar a equidade (equity) em processo para a concretização da Justiça no caso concreto. Por analogia com as “actiones ex aequo et bono” dos pretores romanos, os lordes instituíram os processos denominados writs, destinados a compensar a severidade e intransigência da common-law. A equity nasceu como uma forma de jurisdição do Gabinete, em paralelo com a jurisdição penal do Gabinete – o mal-afamado Tribunal Estrela. O Grão-chanceler, o mais importante funcionário do rei, era, no início, um clérigo e mais tarde um jurista que, com o passar do tempo, foi se transformando em juiz independente. A fonte de sua jurisdição, fundada na equidade, era sua própria consciência, inspirada na equidade romana e canônica. Por natureza, as decisões à base da equidade, inicialmente, eram consideradas apenas Justiça no caso concreto e não podiam ser invocadas como precedentes para casos futuros. Somente a partir do começo do século XIX as decisões com fundamento na equidade adquiriram significado de precedente e assim a equity converteu-se em outra forma de case-law, em paralelo à common-law. A reforma judiciária de 1873 fundiu a jurisdição da equity à da common-law em uma única organização, mas ainda hoje é mantido o sistema dual da equity e common-law.

 

V.                 A essência do case-law inglês consiste em julgar o caso concreto com fundamento na natureza das coisas. O Direito assim descoberto deve suportar a imediata prova e responsabilidade da aplicação prática a um caso concreto. Enquanto isso, o legislador, ao estabelecer normas, deixa-se influenciar por situações jurídicas imaginadas ao acaso, não reais, e não está sob a pressão de um caso concreto. Os analistas continentais destacam sempre a flexibilidade do case-law, enquanto os juristas ingleses acentuam, ao contrário, sua rigidez. De fato, a jurisprudência inglesa, como instituição, goza de grau de criatividade mais elevado do que a continental; o juiz individual inglês, todavia, está mais rigorosamente preso à importância do significado do precedente do que o juiz continental. Os analistas ingleses sublinham, em seu Direito, não tanto a flexibilidade quanto a segurança resultante da rigidez do case-law. A imensa abundância de precedentes é considerada, no entanto, pelos ingleses, e mais ainda pelos norte-americanos, um perigo crescente, de tal forma que, apesar do orgulho em relação ao case-law nacional, produz, de quando em vez, manifestações em favor da codificação ou de algum outro tipo de auxílio legislativo.

 

VI.              Nos EUA, a lei desempenha hoje papel mais significativo do que na Inglaterra. Em cada Estado estão em vigor Códigos Penais, Códigos de Processo e até, em parte, Códigos Civis. Mas sobre estes afirma-se, com muita freqüência, o case-law, graças a interpretações autocráticas das leis pelos juízes, a partir de precedentes. As Constituições, todaviaem particular a Constituição Federal – gozam de extraordinário respeito, quase religioso. Guarda da Constituição Federal é a Suprema Corte em Washington, provavelmente o mais poderoso Tribunal do mundo. Através de suas decisões, manifesta-se o espírito da Constituição e também sua gradual transformação. Nelas domina o pensamento político dos estadistas sob roupagem jurídica. Graças à Suprema Corte, grande número de personalidades judiciárias adquiriram fama internacional, como, por exemplo, o maior jurista norte-americano de seu tempo: Oliver Wendell Holmes.

 

BIBLIOGRAFIA: Radbruch, Geist des englischen Rechts (O Espírito do Direito Inglês), 2ª ed.1947; O. W. Holmes –  em Süddeutsche Juristen-Zeitung (Revista Jurídica do Sul da Alemanha),1946.

 

§ 18. O Código Civil Francês

 

I.                    De 1804 a 1810 teve lugar, na França, por iniciativa e sob influência de Napoleão, a grande obra legislativa conhecida pelos cinco códigos: o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código Comercial, o Código de Processo Penal e o Código Penal. O Código Civil (promulgado em 1804 e denominado, desde 1807, Código de Napoleão) disputa com o Direito inglês a importância mundial e influenciou fundamentalmente a legislação de outros países; o Código Civil de Baden (1809) é quase uma cópia literal dele. Finalidade essencial do Código de Napoleão foi a unificação do Direito na França, onde, no norte, aplicava-se o Direito consuetudinário e, no sul, o Direito Romano, acompanhados, nos dois casos, de Ordenações Reais. Outra finalidade do código foi a aplicação dos resultados políticos da Revolução Francesa.

 

II.                 É evidente a influência pessoal de Napoleão sobre o código, principalmente no que diz respeito à estrutura patriarcal do Direito de Família. Do ponto de vista jurídico, foi significativa a participação do grande jurista Portalis (1745-1807) nesta obra.

 

III.               Deve ser salientada, em primeiro lugar, a linguagem do Código. O famoso romancista francês Stendhal confessou que lia, todas as manhãs um trecho do Código Civil antes de qualquer outra coisa, procurando encontrar o tom correto de seu trabalho como escritor. Não se trata de um código casuísta, nem tem ele a pretensão de solucionar antecipadamente todas as questões jurídicas por meio de exagerada abstração. Renuncia também, conscientemente, ao objetivo de eliminar todas as lacunas e omissões. Portalis mesmo disse: “saber que é impossível tudo prever é sábia previsão”. Apesar disso, seu artigo 4º  impõe ao Juiz, sob as penas da denegação de Justiça, resolver todos os casos jurídicos a ele submetidos, proibindo-o de recusar-se a fazê-lo sob alegação de obscuridade ou inexistência de lei. Contrariando Montesquieu, para quem o Juiz não é senão um instrumento automático e inanimado da Justiçasegundo as palavras de Portalis – considera deuses os legisladores e os juízes algo inferior a homens, mas admite a criação do Direito por estes. De forma diversa do que ocorre na Inglaterra, as decisões dos juízes franceses têm aplicação exclusiva ao caso concreto e não têm eficácia sobre casos futuros. E, de fato, a “jurisprudência”, sem ter força de lei, está revestida de forte autoridade.

 

IV.              A tendência política do Código Civil corresponde à vitória da Revolução Francesa e da burguesia sobre os privilégios de classe: liberdade individual, igualdade perante a lei, propriedade privada, liberdade contratual e autonomia do Estado em relação à Igreja. Excetuado o Direito de Família, predominam no código os princípios individualistas, garantidos de forma mais eficaz nos Códigos do que na Declaração dos Direitos do Homem, uma vez que eles não são mera proclamação, mas valem como parte importante da vida civil. Por isso queria tanto Napoleão que sua lei fosse implantada nos Estados da Confederação do Reno. Em 15 de novembro de 1807 escreveu a seu irmão Jerônimo, rei da Westfália: “Os benefícios do Código Civil, a administração estatal do processo judiciário e a instalação do júri popular precisam ser também características distintivas de vosso reinado. Para expressar-lhe integralmente minhas idéias devo dizer-lhe que isto seria mais importante para a expansão e o fortalecimento de seu trono do que todas as vantagens de grandes vitórias militares. Seu povo alcançaria uma liberdade, uma igualdade e um bem-estar jamais conhecidos pelo povo alemão. Tal governo liberal, de uma forma ou outra, traria benéficas modificações para o sistema confederativo e para a força de seu reinado.” De fato, o Código de Napoleão conquistou, em Baden e na margem esquerda alemã do Reno, em pouco anos, tão grande simpatia e autoridade que, mesmo após a ocupação francesa, continuou em vigor, até ser substituído pelo Código Civil Alemão.

 

BIBLIOGRAFIA: Kantorowicz, Aus der Vorgeschichte der Freirechtslehre (Sobre a Pré-história da Teoria do Direito Livre), 1925; Feuerbach, Biographie (Biografia), obra póstuma, 1853, t. I, págs. 162 e sgs.; Federer, Geschichte des badischen Landrechts (História do Direito Territorial de Baden), 1947.

 

§ 19. O BGB – Código Civil Alemão

 

I.                    Enquanto o Código francês revela a face de Napoleão, é inútil procurar a face do legislador no vigente Código Civil alemão. Parece que o BGB (Bürgerliche Gesetzbuch) procura comprovar a afirmação de Savigny, segundo a qual os grandes juristas são fungíveis, substituíveis, pois, em extraordinária ascese, preocupados com a validade objetiva universal, deixam esfumar-se todas as suas atividades individuais. O BGB é a codificação do Direito consagrado no final do período da burguesia e não, como o Código francês, o resultado de uma luta, de uma revolução. Enquanto as exposições sobre Direito Penal  começam sempre pela teoria dos fundamentos e finalidade da pena, os evidentes princípios do Direito burguês jamais mereceram grande discussão: propriedade privada, liberdade de contratar, liberdade de testamento, monogamia e direito à sucessão.

 

II.                 O BGB surgiu a partir do fatal ano de 1878, ano do Congresso de Berlim, quando, na política exterior, o país foi gradualmente se desligando da Rússia e vinculando-se progressivamente à Áustria, e, na política interna, substituiu o livre comércio internacional pela proteção alfandegária; Bismarck abandonou o Partido dos Fundadores do Reich – os nacionalistas liberais; superou-se a luta político-religiosa; surgiu a inclinação para o conservadorismo e o conflito com a social-democracia, negativamente traduzida pela lei anti-socialista e positivamente manifestada pelo início da legislação em direção ao socialismo de cátedra e a união pela política social. Mas o BGB não conseguiu de imediato essa libertação do individualismo extremo e este encaminhamento para o Direito social, apesar das duras críticas de O. v. Gierke, representando o super-individualista Direito alemão, e Anton Menger, representando os interesses da classe pobre. Estas críticas conseguiram apenas que alguns artigos de caráter social fossem introduzidos no Código (por exemplo, os §§ 226 e 618 do BGB).

 

III.               A linguagem do BGB é técnica, incompreensível para o povo, mas absolutamente conseqüente enquanto pura linguagem de comando: seca e sem sentimento, concisa e sem esclarecimentos, pobresem fundamentação (vide abaixo, §29). Da mesma forma caracteriza-se também seu Método. Através de forte abstração, preocupa-se, tanto quanto possível, com a inexistência de lacunas, favorecendo a “jurisprudência de conceitos” e a metodologia jurídica da logística; em pontos decisivos emprega, todavia, cláusulas gerais como “boa ” e “bons costumes”, que, em última análise, autorizam o juiz a prolatar julgamentos pessoais (§§ 138, 157, 242, 826 do BGB). Tanto na linguagem quanto no método, o BGB foi superado pelo Código Civil Suíço (Eugen Huber). O BGB constitui um sistema tão fechado de idéias que, mais tarde, o Direito Social e Econômico não puderam ser nele introduzidos. O Direito de proteção à juventude, o Direito do Trabalho, o Direito Econômico, a legislação do inquilinato tiveram, então, que entrar em vigor em paralelo com o BGB. Os nazistas anunciaram a despedida dele, em razão de seu caráter individualista. Acentua-se, todavia, atualmente, a reabilitação do Direito Privado contra a ameaça da exclusividade do Direito social (conforme Hallstein, Süddeutsche Juristen-Zeitung – Revista Jurídica do Sul da Alemanha, 1946, 1).

 

IV.              Precisamente estas carências de caráter político e de características nacionais, assim como o elevado processo de abstração, possibilitaram ao BGB ser recebido como sistema jurídico por outras culturas, sob condições muito diversas, como na Ásia oriental. Um antigo jurista alemão escreveu, da Coréia, a este autor, o seguinte: “Meu trabalho é fascinante, por muitas razões. A Coréia adota o Direito japonês desde que, há 35 anos, foi anexada ao Japão. O Japão, em grau maior ou menor, adotou o Direito alemão. Desta forma, como funcionário da ocupação americana na Coréia, tenho, sobre a minha mesa, a coleção jurídica alemã – o Código Civil, o Código Comercial, o Código de Processo e a legislação complementar – e opero como uma espécie de Oficial de ligação jurídica entre os coreanos e os americanos. Como estudei os dois sistemas jurídicos – a legislação codificada e a common-lawminha tarefa é explicar aos americanos o Direito coreano (isto é, alemão).” Naturalmente, a equiparação do Direito alemão com o coreano-japonês deve ser feita com muitas restrições. A grande codificação teve que ser, em grande parte, adaptada às exigências asiáticas orientais: o Direito de Família e Sucessões permanece regido pelo Direito consuetudinário e deve ser estudado com cuidado, uma vez que, evidentemente, ninguém teve a idéia de pesquisar o processo de recepção do Direito alemão pela Ásia oriental, o que seria uma tarefa interessante, sob o ponto de vista da sociologia jurídica.

 

 

BIBLIOGRAFIA: R. Sohm tem uma exposição clássica sobre o BGB na antiga cultura Hinneberg, injustamente esquecida, em Kultur der Gegenwart (Cultura do Pasado), 2ª ed., 1913.

 

§ 20. O Codex Juris Canonici

 

Ainda hoje o doutor em Direito é qualificado, em muitos países, doctor utriusque iuris (J.U.D.), isto é, doutor em ambos os Direitos, o Direito Romano e em Direito Canônico, o primeiro corporificado no corpus iuris civilis e o segundo no corpus iuris canonici.

 

I.                    De acordo com a Filosofia do Direito católica, há três fontes de Direito:

 

1.      o ius humanum positivum, ou seja, a lei dos homens, o Direito mundial;

2.      o ius divinum naturale, ou o Direito colocado por Deus na criação, cognoscível pela razão;

3.      o ius divinum positivum, objeto da revelação divina, da religiosa (Mateus, 16, 18: tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam – tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha igreja).

 

Esta teoria das fontes significa que o Direito Canônico não possui autonomia, própria do Direito secular, mas está profundamente vinculado à dogmática, aos costumes e à disciplina eclesiástica.

II.                 O Direito eclesiástico foi originalmente o Direito da Igreja para o mundo: o Direito Canônico regulava muitas situações hoje reconhecidas como objeto do Direito secular. Com a evolução, foi ele cedendo sempre mais espaço ao Direito temporal e limitando-se a ser essencialmente apenas um Direito da Igreja e para a Igreja. Graças à mesma evolução, o Estado reivindicou o poder de regulamentar suas relações com a Igreja, criando um Direito estatal para a Igreja, um Direito eclesiástico estatal. Há também um Direito Internacional eclesiástico: o Papa é um soberano, titular de direitos internacionais, e relaciona-se em de igualdade jurídica com os demais Estados, mantendo embaixadores e celebrando acordos internacionais.

 

III.               O corpus iuris canonici foi substituído por moderna codificação – o codex iuris canonici (C.I.C.). Coube ao Papa Pio X (1904) a iniciativa dos trabalhos preparatórios para este código, que entrou em vigor em 1917, no pontificado do Papa Benedito XV. O principal trabalho científico para a codificação foi desenvolvido pelo então Cardeal Secretário de Estado, Pietro Gasparri.

 

IV.              O codex iuris canonici tem aproximadamente a mesma extensão do BGB e foi dividido com base no sistema de instituições: pessoas, coisas e ações. Além disso, há uma Parte Geral e um livro final sobre as penalidades eclesiásticas, perfazendo o total de cinco livros. A técnica legislativa do C.I.C. é semelhante à das modernas codificações, exposta em latim (latino sermone uteretur, eoque digno, quantum liceret, sacrarum majestate legum, in iure romano tam expressa feliciter – será utilizada a língua latina, digna, tanto quanto possível, da majestade das leis sacras e com tanta felicidade empregada no Direito Romano).

 

V.                 O espírito do C.I.C. foi influenciado pelo que ocorreu no trágico ano de 1870: o Concílio Vaticano, a proclamação do dogma da infalibilidade papal e a anexação do Estado do Vaticano pela Itália. Importante, por isso, eracompensar pela força espiritual o que havia sido perdido no plano material”, ou seja, de um lado, retornar cada vez mais ao campo puramente religioso e, de outro, reforçar o poder centralizador do Papa. Apesar de sua hierarquia absolutista, conseguiu a Igreja manter-se sempre profundamente enraizada no povo, porque o clero é recrutado em todas a camadas sociais, principalmente entre os camponeses.

 

VI.              A restauração do Estado eclesiástico sob a forma da cidade do Vaticano foi também obra de Gasparri. Este minúsculo Estado nãofundamento real ao poder, mas é um instrumento auxiliar técnico para o relacionamento internacional. Na verdade, a soberania da Santa continua apoiada no poder espiritual do papado. Não se veja nisso uma anomalia do Direito Internacional, mas o ponto de partida de futura ordenação jurídica internacional, o novo protótipo para a soberania internacional de outros poderes espirituais (vide §35).

 

 

BIBLIOGRAFIA: Ulrich Stutz, Der Geist des codex iuris canonici (O Espírito do Direito Canônico), 1918; Sohm, Kirchengeschichte im Grundriss (Compêndio de História da Igreja), 1918; Papa Pio XII, Opus Justitiae pax (A Paz é obra da Justiça); Joseph Klein.