GÊNESE DO CONCEITO DE JUSTIÇA1

 

1 - Colocação

 

Ao iniciarmos o estudo da gênese do conceito de Justiça, não suponham os senhores que vamos na busca da gênese de um conceito elaborado de Justiça, já contendo todos os seus elementos enucleados e identificados. Seria equivocada uma tal impressão sobre a pesquisa que vamos realizar. Não é isto o que vamos fazer. O que procuraremos, neste estudo, é surpreender a gênese da Justiça, tal como na história ela se nos dá" .

Vamos observar o conceito espontaneamente elaborado, de Justiça, na história. Não praticaremos um gesto inútil: não iremos pe­dir um conceito crítico e racionalmente elaborado.

Buscando a gênese do conceito de Justiça, nós vamos encontrá-lo tal como ele surgiu quando no subconsciente humano: larvado, difuso, crepuscular. Essa presença, que na primitiva consciência do homem, se encontra sob a forma de uma idéia informulada, não é, entretanto, uma presença de desprezar. Sem ela, não se haveria concretizado na história o comportamento justo. Sem ela, os homens não expressariam em gestos veementes o seu desagrado face à injustiça.

Na verdade, o comportamento efetivo de repulsa, repúdio e desagrado que os homens, desde a sua primitividade, assumiram face à injustiça, é um comportamento que exige, de parte do homem que se comporta, um prévio vislumbre do conceito, embora informulado.

De outra parte, os romanos, ao darem sua conceituação de Justiça (cujas deficiências já examinamos), definindo-a como vontade, demonstravam, também, a presença, em seus espíritos, de um conceito informulado de justiça.

A psicologia nos ensina que não se constitui um comporta­mento volitivo, sem uma prévia representação, na consciência do homem. Conseqüentemente, a vontade, o comportamento volitivo que, para os romanos constituía a Justiça, já denunciava e pressupunha a presença, embora informulada, de um conceito de Justiça, no espírito humano.

Encontrando estas manifestações primeiras, e primitivas, da Justiça na consciência dos homens, observaremos coisas quase paradoxais. Veremos, assim, a Justiça brotar da injustiça; a autoridade exsurgir da violência; a solidariedade nascer da compulsão da neces­sidade. Fixamos o sentido da nossa busca: nesta pesquisa sobre a gênese do conceito de Justiça é um conceito inacabado o que podemos e o que devemos encontrar.

 

Existência de uma gênese

 

A Justiça que é um valor, e por isso mesmo possui uma ontologia, é conceituável. Este conceito já o examinamos na dissertação anterior. Devemos perguntar se ele tem uma história, uma gênese. Qual é essa gênese?

As respostas que os autores dão à pergunta são perturbadoras. Alguns se limitam a reconhecer a presença do conceito de Justiça no homem, dando-o como uma idéia inata, ou como um sentido ideal, ou como um ideal irracional. Também Aristóteles e Santo Tomás de Aquino tomam a Justiça como um dado que está aí.

Entretanto, o pensamento nota que não basta construir um conceito de Justiça. E não o é, porque o conceito que damos está partindo de um fato psicológico: o de que a Justiça se encontrava (e se encontra) empiricamente instalada no espírito humano. Por isto: uma vez que destacamos já, em suas partes essenciais, o conceito de Justiça, devemos perguntar-nos se ele tem uma gênese. Como o constrói o espírito?

 

Metodologia experimental

 

O conceito de Justiça tem uma gênese, e esta gênese é psicológica. Poderia parecer que esta proposição se choca com as nossas palavras anteriores, que definem a Justiça como um valor. Na verdade, poderia alguém objetar: se definimos a Justiça como um valor, como é que iremos, agora, procurar a gênese deste "valor", desmontando "um fato" (o fato psicológico)?

Esta objeção, entretanto, não colhe. E isto, porque um valor é sempre um ser; um valor está no ser; radica no ser; é o próprio ser visionado racionalmente em uma perspectiva de finalidade. Por isto, se lhe queremos descobrir a gênese, devemos ir ao ser, devemos ir ao homem, devemos ir à psicologia humana.

Vimos que a Justiça não é uma idéia inata no espírito do homem; mesmo porque não há idéias inatas. Portanto, se não é uma idéia inata, a idéia de Justiça surge de experiências.

Entretanto, vimos que a idéia de Justiça não pode derivar de experiências jurídicas; e isto, pela simples razão de que a Justiça não pressupõe a experiência jurídica (o direito), mas, ao contrário, o direito, a experiência jurídica é que pressupõe a idéia de Justiça, uma vez que é em virtude desta que aquela se constitui e se denomina jurídica. Conseqüentemente, se a idéia de Justiça não surge de experiências juridicas e surge de experiências, de outras experiências ela surgirá.

Que experiências serão estas? Serão experiências humanas, de múltipla proveniência. Repetimos, ainda uma vez, que é perfeita­mente admissível esta metodologia experimental, de busca do conceito de Justiça na história.

O valor, dizíamos, é ser. E nós podemos apreender o ser também sensorialmente (e não racionalmente). Aliás, a apreensão racional está previamente condicionada à apreensão sensorial. Vamos, as­sim, tocar, com validez metodológica, dados humanos da mais varia­da proveniência. Vamos tocar dados etnográficos, dados antropoculturais, etc.

Há autores que recusam que o conceito de Justiça tenha uma gênese, tenha uma história. Isto vem de que os conceitos que de Justiça tais autores apresentam são conceitos que não radicam na experiência. Esta é a causa do fracasso de suas teorias da Justiça. Por isto nós não nos deteremos ante uma aparente sacralidade da idéia de justiça, e nos debruçaremos, sem irreverência crítica, no exame das experiências, em que radica a gênese do conceito de direito.

 

2 - Experiências humanas que se encontram na base do conceito de justiça

 

Amplitude da experiência humana de ordem

 

Que experiências são estas, em que radica o conceito de Justiça?

Vimos que a justiça não é uma idéia inata - não existem idéias inatas; vimos que não se deriva de experiências jurídicas - porque a experiência se qualifica de jurídica, pela presença de um conceito de Justiça. Então cumpre perguntarmos que experiências são estas, de que se deriva o conceito de Justiça.

Estas experiências são experiências que podem ser colhidas até no mundo das realidades físicas; e também no plano da biologia; e no de experiências humanas que se assemelham a comportamentos zoopsicológicos. Estas experiências envolvem a totalidade dos seres. As leis físicas e mecânicas são expressões de ordem no ser. As leis biológicas são expressão de um ser ordenado. Também as leis que regulam os comportamentos humanos, que se assemelham a comporta­mentos zoopsicológicos, expressam a ordem no ser, são expressões de um ser ordenado. E esta idéia, a idéia de ordem, é a idéia fonte, para a constituição de um ordenamento jurídico.

A ordem jurídica é o prolongamento, no espaço social, da ordem cósmica. Por isto, interessa-nos (e interessa-lhe, à ordem jurídica) a ordem cósmica, a ordem biológica, a ordem zoopsicológica. Portanto, as experiências que vamos utilizar, para o nosso estudo, não serão apenas experiências de uma humana ordem. São experiências de uma ordem total. Quais são as situações experimentais, que dão a gênese do conceito de Justiça no espírito do homem?

Para que se encontrem essas situações sugiro que pensem na idéia de ser (em geral); na idéia de fim em geral); e na idéia do ser humano, coexistindo com a totalidade dos seres, no seio dos cosmos. Ou outras palavras, pensemos no espetáculo de uma ordem sem liberdade - a cósmica; e no espetáculo de uma ordem com liberdade ­a do mundo interior da pessoa; e, finalmente, no espetáculo de uma ordem com liberdade e com solidariedade - que é a ordem do convívio social humano.

 

Ordem cósmica, sem liberdade, como coexistência.

 

O espetáculo de uma ordem cósmica, sem liberdade, se constitui sob o impulso da causalidade. Esta ordem é expressão de um determinismo universal. Ela se constitui ferreamente. O homem nasce e tem sob os seus olhos este espetáculo. O homem está dentro do ser. A primeira coexistência do homem é com este universo. De certa forma o homem surge apreendendo este espetáculo de ordem. Ordem deter­minada pela causalidade.

 

Ordem (humana) interior, com liberdade, sem solidariedade

 

Estando nesta ordem, o homem se apercebe, o homem vê que é portador de uma vocação para participar nessa ordem: que lhe "é imposta" porque "ele é um fragmento desta ordem". Mesmo o mais boêmio dos homens apreende que é portador de uma disposição para a ordem, quando sofre sanções pelos seus desregramentos. Esta ordem, de que o homem se apercebe participante não é apenas uma ordem "biológica": é também uma ordem "psicológica e ética". Assim, por exemplo, o homem vê que não pode pensar senão dentro dos princípios teórico-lógicos de identidade, de razão suficiente, etc., que ordenam o exercício do pensamento; não pode agir livremente, em oposição aos princípios práticos, que regulam o exercício da ação.

Entretanto, o homem sofre a pressão das leis do seu ser que, sendo ordenado, postula a ordem; mas percebe também que guarda liberdade, percebe que esta ordem não o determina, o convida a realizá-la.

O homem, inserido em uma ordem universal causal, toma consciência de que deve realizar uma ordem humana. Mas toma também consciência de que é apenas pressionado. O homem deve realizar a construção de uma ordem humana, dentro de uma ordem cósmica. Mas esta ordem o homem deve realizá-la; ela não está dada, como no mundo animal; ela não é como a ordem das abelhas que lhes vem com o ser.

Com o ser humano a coisa se passa ao contrário do que se passa com os animais. O ser humano não é senão o que ele deve ser. O ser humano é um dever-ser. É o dever-ser que a razão descobriu e que a vontade deve realizar. Assim, o homem autêntico - ao contrário do animal - não é o dado, mas o construído, o que deve ser. Quando o homem atende este dever ser, o homem está realizando uma situação de ordem humana.

Acabamos de ver como se passou da ordem cósmica - em que há ordem sem -liberdade - para a ordem humana - em que há ordem com liberdade. Surgimos seres racionais e livres. Existindo, estamos envolvidos em relações ordenadas, mas não em um determinismo rí­gido. Assim, sentimos que somos livres, mas chamados à realização livre de uma ordem que é expressão da nossa natureza racional (ordenada).

O nosso ser nos sendo dado, não nos é dado em toda a sua plenitude e perfeição. O ser humano é um ser que devemos construir. É preciso descobrir pela inteligência os fins, e realizá-los pela vontade. Isto é algo que se realiza ou não. Por isto, o homem, na sua liberdade, pode realizar ou frustrar esta ordem. Mas o homem se sente e se sabe não solitário, mas solidário. Esta solidariedade ele a descobre muitas vezes sob a pressão de dolorosas experiências reveladoras de que sua realização deve processar-se solidariamenrte, dada a dimensão social de sua natureza.

 

Ordem social (causalmente determinada), sem liberdade com solidariedade.

                            Vimos, assim, a idéia de uma ordem sem liberdade. Vimos, também, a idéia de uma ordem com liberdade. Nesta, vimos que o homem encontra em si uma ordem, que ele pode destruir pela sua liberdade.

O homem é energia, mas não é explosão: esta energia está configurada dentro de determinadas estruturas de ser. Entretanto, quanto a esta ordem, o homem conhece a liberdade: tanto o homem pode dela abusar, quanto pode obedecê-la, utilizando-a construtiva­mente para os seus fins.

Vamos, agora, ver que o homem encontra, ainda, um outro tipo de ordem. É a ordem social, a ordem do coexistir. Esta ordem social - da qual nós vamos partir, em nossa pesquisa, é uma ordem social que se constitui à imagem e semelhança da ordem social dos formigueiros. É uma situação existencial. É, neste sentido, semelhante à do cosmos. Está aí. Sempre esteve aí.

Inicialmente, o convívio é um dado, que a pressão da causalidade engendra. O homem convivia por egoísmo; a solidariedade nas­cia do medo; o homem era animal gregário. Assim registramos a pre­sença inicial de uma ordem social, gerada pela causalidade.

 

Pressão convergente destas experiências

 

Vimos, pois, que o homem, quando se apreende, apreende, simultaneamente, uma ordem universal; uma ordem interior; e uma ordem social, que existia à maneira da ordem social animal.

Ante a pressão convergente destas três ordens, o homem não fica insensível e começa a realizar a tarefa do ordenamento do ser social. Aliás, o homem não poderia ficar insensível à pressão convergente destas três ordens. Em verdade, na situação da vida humana, a finalidade atua com pressões que - se não certamente iguais - pelo menos são muito próximas às com que a causalidade atua. O homem sofre e recebe, não apenas um apelo, mas uma inclinação, que não lhe paralisa a liberdade, mas o dispõe a colaborar nesta ordem que ele vê em torno de si e em si mesmo, como natureza.

Supondo a hipótese que o homem fugisse desta exigência de realização da ordem, sofreria toda a pesadíssima sanção dos seres ordenados. Sanções que o forçariam a ingressar no caminho da construção da ordem. Sabemos que o homem é apto para transformar um convívio que se originou causalmente, em um convívio estruturado em função de fins, racionalmente descobertos.

Já a herança pagã nos ensina que a primeira máxima da sabedoria consiste em seguir a natureza. Isto nos evidencia, por um outro ângulo, que a pressão convergente daquelas três situações, daquelas três ordens, haveria de dispor o homem a construir uma ordem. Pois na verdade, seria possível ao homem (quando já os pagãos dizem que é sábio seguir a natureza), com tais pressões naturais, resistir ao impulso de realizar uma ordem? Certamente que não!

O homem, por isto, vai realizar uma ordem. Uma ordem segundo a sua natureza, contendo racionalidade; contendo liberdade. Vai realizar mia ordem, descoberta pela razão e realizada pela vontade. O homem vai ensaiar a sua tarefa. A tarefa de realizar um convívio que não é o das pedras nem o dos animais. Um convívio que será a expressão de uma liberdade e a resultante de um ideal de realização de formas possíveis de vida. O homem transmutará um convívio em que ele estava, pela lei da causalidade, em um convívio em que ele deve estar (pela lei da validade). O homem vai transmutar uma lei de causa em uma  lei de fim, ética e jurídica.

Nesta transmutação, a solidariedade, que era a expressão do medo e da violência, se transformará; e, em virtude desta transmutação, o homem haverá de dar ao seu próximo não só o que dele receber, mas também o que dele nunca recebeu".

Na alquimia desta transmutação, caberá espaço para o nasci­mento de uma nova ordem dentro da ordem cósmica - ordem livre face à ordem determinada, ordem finalística face à ordem causal.

 

3 - Mecanismo da gênese psicológica do conceito de justiça

 

Colocação

 

Assim, o problema da constituição de uma ordem humana é o próprio problema da gênese do conceito e Justiça.

Como o homem se encontra dentro de uma ordem universal, ele vai constituir uma ordem humana.

Nesta ordem humana nós encontraremos uma forma de inter­relação dos indivíduos que será original: tão original quanto o próprio homem.

Por isto, esta ordem humana não será como a ordem física, ou mecânica, tão pouco será como a ordem instintiva. E não será, porque se o fosse, nela não se teria expressado a originalidade do ser humano.

Na ordem humana deve haver a presença de liberdade e pensamento. Ela deve ser obra da razão que descobre fins, e da liberdade que consente em realizá-los.

O problema da gênese da justiça coincide com o problema da constituição de uma ordem humana. O fator desta ordem humana deve ser a justiça, para que se realize um estilo de comportamento que é ordem livre: BEM-COMUM.

Assim, partimos de uma idéia de ordem no cosmos. O homem não encontra o ser: encontra os seres, que são expressões de uma "determinada natureza". Cada ser possui determinadas propriedades. "Cada tipo de ser é expressão de uma ordem". Cada tipo de ser revela o mistério de um tipo existencial. E encontramos a gênese de uma nova ordem. Uma ordem que nasce da razão humana, que descobre os fins, e da vontade, que encerra os valores. Por isto, a construção desta nova ordem supõe no homem a razão e a vontade: que são as suas originalidades.

Vimos que o homem quer encarnar um convívio, na vida social, que opere a transmutação da lei de causalidade pela lei de finalidade. Devemos ver como é que surge, dentro deste quadro, a justiça. Devemos ver o que é a justiça.

Vamos examinar, portanto, o mecanismo psicológico levando os elementos que colhemos do plano histórico, de que acabamos de sair. A justiça, veremos, é uma derivação necessária desta convergência das pressões de uma ordem cósmica, de uma ordem interior, e de uma ordem social, dado que levam o homem a realizar uma ordem humana, com liberdade.

Dissemos que, no princípio, o homem conviveu à imagem e semelhança das formigas. Mas nunca foi um convívio igual ao dos animais. Porque o das formigas é sempre igual. E o da história humana é pleno de imprevisto, porque nele há liberdade.

Se o homem viveu à imagem e semelhança das formigas, não obstante, esta semelhança, ele guardou aptidão para superar o determinismo da causalidade, pela construção de regras, normas e preceitos que se constituíram também à imagem e semelhança das leis natu­rais.

Assim, o homem faz regras de ação humana que o encaminham na busca de seu fim. Assim, o homem faz regras e normas que são precipitados psicológicos da idéia de justiça. E o material que vamos utilizar para surpreender a gênese do conceito de justiça é ­precisamente - "o convívio estilizando-se segundo normas".

 

Gênese da Relação Familiar

 

Vimos que o homem se encontra dentro do convívio social, nolens, volens. A localização do homem no quadro social é tão inelutável, quanto no quadro cósmico. Ele está no quadro social, pela força da natureza, pela força da causalidade, assim como as abelhas estão na colméia.

Esta situação é racional, mas é animal. O homem é, aliás, um zoon politikon como diziam os gregos. Esta é a sua limitação animal. Quanto à necessidade de convívio para o homem, dizia Aristóteles que "a solidão é só possível aos brutos e aos deuses". Busquemos, neste quadro de convívio, nesta forma embrionária de inter-relação humana, alguma forma estável de relação interpessoal. Vamos analisar a mais elementar das inter-relações pessoais estáveis; tomemos a relação sexual.

Se observamos a situação da natureza humana, vemos que o convívio é indispensável. A natureza humana é bissexuada. Cada homem, cada mulher, é uma revelação de indigência, a buscar, a suplicar colaboração para a obtenção de plenitude humana. Os animais, que também vivem esta indigência, não se apercebem: mas o homem bem vê que o bem do ego não se realiza sem a colaboração do alter. Nesta inter-relação sexual o homem se apercebe do conceito de bem comum: pois o bem do ego não é obtenível senão através, e conjuntamente, com o bem do alter. Há aqui uma exigência para a colaboração, que brota espontaneamente da polarização sexual. Vivendo o homem a polarização sexual, ele pode dar-lhe satisfação; e tende a isto - para o que colabora.

Temos, aí, o surgimento da primeira relação interpessoal estável, que é a familiar. Brota a família de uma indigência biológica, e tem repercussões históricas e sociológicas.

 

Aplicação da teoria da instituição à família

 

Lembremos, neste caso, a teoria da instituição, de grande importância do ponto de vista jurídico. Maurice Hauriou define a instituição como "uma idéia de empresa ou de obra que se realiza e dura juridicamente, num determinado espaço social".

Vamos examinar a instituição, para aplicar os resultados teóricos do seu estudo ao quadro doméstico. A instituição é uma fonte normativa. Onde houver uma instituição, haverá normas. Como vêm, tomamos posição em favor de um pluralismo normativo, que surge espontaneamente, como resultante de um convívio. A instituição é uma associação humana de seres que, tendo a visão de um fim, cooperam e unem-se, na tarefa de realizá-lo.

Por isto, a instituição é fonte geradora de normas. Há, onde homens se associaram para a realização de um fim, um quadro de convívio apto para engendrar uma normatividade. A idéia de fim é unificadora, e todo o convívio institucional é fonte normativa. Os homens se congregando naturalmente para atender um fim comum, espontaneamente legislam.

O próprio convívio está a exigir normas, porque durante o tempo, a visão comum do fim mobilizará a vontade para a colaboração; e, como a colaboração dura - e quer-se que dure no tempo - para durar, sentem os homens a necessidade de fixar as melhores formas de colaboração. Estas são as normas. Eis que o fim fez nascer a norma.

Aí surge a autoridade. A autoridade surge depois de haver surgido norma. A autoridade surge para interpretar e para aplicar a norma surgida do fim, do convívio. Isto implica a rejeição do voluntarismo.

Outras colaborações, e não apenas a colaboração familiar, que está em linha de exame, os homens também experimentam. Igual­mente nestas outras o que tange o convívio será uma idéia de fim comum.

Apliquemos estes resultados da análise da (teoria) instituição à primitiva relação interpessoal estável que isolamos. Vimos que, para que se constituísse a família, era apenas necessário que os homens se abandonassem docilmente às exigências da natureza sexual humana. Constituída a família, satisfeita, satisfeita e atendida a exigência sexual, surgida a prole, temos o aparecimento simultâneo, embora larvado: de um bem comum, de uma autoridade e de uma consciência de atendimento ou desentendimento de um fim comum.

A família, vimos, é uma instituição; como tal, é um quadro de convívio apto a gerar normas, para durar; e a normatividade que vai garantir a existência do grupo é a normatividade que for conforme com o fim do grupo.

Na família, pois, se encontra, larvada e elementar, a mesma consciência humana que vai, mais tarde, formar e estruturar o conceito de justiça. Mesmo que estes homens não soubessem dizer duas palavras sobre isto, eles viveram isto. Viveram uma adesão do ho­mem aos fins do convívio, apta a engendrar uma normatividade, que é a regra que ajusta a ação ao bem comum; que dá satisfação às exigências do bem comum e às exigências de continuação do bem comum.

 

A gênese da Justiça na gênese da normatividade

 

Vimos, assim as situações humanas de que saiu o conceito de justiça. Este conceito brotou informulado; brotou como uma direção do espírito. Esta informulação do conceito consiste - é bom advertir ­não em uma vacuidade representativa, mas em indeterminação representativa, na qual se instala uma direção do espírito.

É preciso, entretanto, agora, que expliquemos algo. No curso da análise que realizamos, vimos comportamentos humanos que indicam que o homem constrói o direito, constrói normatividades, quase com a mesma espontânea naturalidade com que a aranha tece a sua teia.

Isto nós encontramos e vimos, através da análise de uma relação interpessoal estável, a relação familiar, nascida da polarização sexual. Mas, e por que fomos ao direito, à normatividade, quando o que buscávamos era a justiça? Por que apreendemos a gênese da normatividade, quando buscávamos apreender a gênese da justiça?

A resposta é simples, fomos ao direito, quando buscávamos a justiça porque o direito é a objetivação da justiça, é a justiça objetiva­da. E nós podemos apreender a justiça tão só pelo caminho da sua objetivação. Havendo apreendido normas, devemos fazer um esforço indutivo, para vermos o valor que se oculta nestas normas e nelas se expressam. Este valor é a justiça.

O comportamento humano que encontramos é um comporta­mento humano no qual já se fazia sentir, espontaneamente, a existência de normas. É um comportamento humano no qual já está a idéia de justiça.

Múltipla polarização de valores

Frisemos que a polarização que o homem vai sofrer não é só a da justiça. O homem é um ser lógico, um ser moral, e um ser religioso. Mesmo na relação interpessoal familiar, pois, há algo mais do que a simples polarização sexual. A justiça será polarizante, mas como um valor, entre muitos valores.

Por isto, quando o homem vai fixar normas, não as vai fixar tendo em vista apenas o convívio. Vai, igualmente, fixar normas que, possibilitando o convívio, perfeccionem o indivíduo. Estarão presentes, sempre, no homem, as polarizações religiosa, ética, estética, etc. Mesmo nos primeiros momentos, estas polarizações coexistirão com a polarização sexual. Por isto mesmo, muitas vezes, exigências morais e religiosas explicam melhor os ordenamentos jurídicos do que a simples polarização do convívio e da justiça.

 

Apreensão da gênese do conceito de Justiça através do surto do Direito Penal

 

Devemos examinar, agora, qual seja a linha de evolução do conceito de justiça, dentro deste quadro histórico. Devemos ver como se constitui, natural e espontaneamente, a idéia de justiça.

Observando o comportamento de um primeiro grupo humano, como a família, vemos que este comportamento se constitui dentro de uma linha determinada. Vemos que as normas são constituídas e cria­das para uma finalidade específica.

Como sabemos, as normas são constituídas para que o grupo dure; as normas são criadas para o atendimento dos valores de conservação do grupo. O perigo de destruição impede o aperfeiçoamento do grupo e o aperfeiçoamento do indivíduo. Este é o contexto explicativo que ilumina o primado histórico, cronológico das normas penais. O primado das normas penais significa que elas eram modeladas para que o bem comum do grupo não fosse lesado e, conseqüente­mente, não fosse lesado o bem do indivíduo pertencente ao grupo.

Esta motivação nos faz ver, também, porque - no princípio ­as sanções e as penas se constituem sem prévia formulação legal. A sanção penal, primeiramente independente do nulla poena sine lege, mostra-nos, por assim dizer, a justiça pelo avesso: com as normas penais, com as sanções penais, o grupo visa a proteger o bem comum.

Por isto, tudo o que for contrário ao bem comum é antijurídico e punido. Daí se pode concluir que o grupo primitivo, embora informuladamente, estava a viver e a agir dentro de um conceito de justiça. Na verdade, se tudo o que for contrário ao bem comum é antijurídico, tudo o que for conforme ao bem comum será jurídico.

Isto nos mostra que os homens, que estavam convidados, pela sua situação existencial, a realizar uma ordem, procuravam realizá-la. E para tanto, castigavam e puniam todos aqueles que ameaçavam o convívio.

Conseqüentemente, no direito penal primitivo não encontra lugar a preocupação romana de dar a cada um o seu.

Sempre se teve, no direito penal, a visão da coletividade, a vi­são do bem comum. Nele, sempre se apresentou a consideração das condições existenciais do grupo. Pela polarização da coletividade, do todo, o primado histórico cronológico do direito penal é uma demonstração de que a justiça é uma conformidade da conduta com o bem comum. As normas eram constituídas para resguardar as condições existenciais do grupo. Tais condições existenciais do grupo constituem larvadamente o bem comum.

A norma era, já na sua expressão mais primitiva, a força que punha o rebelde em linha com o bem comum.



1 Apontamentos do Curso de Filosofia do Direito.