III

Do Direito individualista ao Direito social (1)

Quando os cinqüentões de hoje tinham quinze anos, costumavam repetir com freqüência em suas conversas algumas palavras significativas: personalidade, gênio, super-homem! Hoje, tais palavras perderam o brilho. Foram apagadas por outra palavra, embora desgastada e empalidecida: comunidade.

A transformação conhecida como passagem da concepção individualista para a concepção social do mundo foi sensível em toda a cultura. Na arte, pode ser qualificada como a transição da cultura lírica para a arquitetônica. A juventude daqueles que agora começam a envelhecer vivia de poesias, de monólogos de uma alma que, sem ser notada, escutava a outra. Na medida em que, hoje, as obras de arte não tocam mais as almas, deixaram de ser poemas e passaram a ser edifícios, ou seja, obra de arte de comunidades para comunidades. Esta transformação é mais evidente, porém, na ciência, em particular no surgimento e progresso de um novo campo de pesquisa que coloca todos os domínios do espírito sob o aspecto da vida social: a Sociologia, que assume sobre as demais ciências papel assemelhado ao que a Filosofia exerceu na época do individualismo.

Não foi por acaso nem por um capricho do espírito que se deu esta transformação. Ela foi conseqüência das transformações econômicas. Na ordem econômica capitalista, o proletariado tomou consciência, antes dos demais, de que, isoladamente, nada era e de que somente como classe podia ascender ou descer. Por outro lado, a evolução, no capitalismo, de uma Economia livre para uma Economia comprometida proporcionou ao empresário a visão de seus irrecusáveis vínculos sociais. A evolução social da cultura é, portanto, tão-somente um reflexo da realidade de uma economia social.

O Direito seguiu esta mesma evolução. Embora muitos não saibam, ou não o percebam, estamos experimentando, no momento, uma transformação do Direito: uma transição não menos significativa do que a recepção do Direito Romano ou do Direito Natural. Nossaépoca caracteriza-se pelapassagem de umperíodoindividualistaparaumperíodosocial, afirmou o Ministro da Justiça nas festividades relativas ao cinqüentenário do Tribunal do Reich, palavras que o Presidente do Tribunal acolheu imediatamente.

Mas não entenderemos a profundidade desta evolução para o Direito social se, sob a denominação de Direito social, concebermos apenas um Direito que se preocupe com a segurança e o bem-estar dos economicamente mais fracos. Direito social repousa, acima de tudo, sobre uma transformação estrutural do pensamento jurídico e sobre um novo conceito de homem: não admite o homem como ser isolado, carente de individualidade, despido de suas peculiaridades, reconhecido como frustrado, subtraído de sua sociabilidade, mas apenas o homem social concreto (2). Somente quando o Direito está voltado para esta imagem de homem torna-se possível compreender a diferença entre potência e impotência social, cujo conteúdo a definição do Direito social evidencia, principalmente em relação aos demais ramos do Direito.

A tradicional ordem jurídica individualista estava orientada para o indivíduo isolado, sem individualidade. Diante de altas árvores, não queria ver a floresta; diante de grandes indivíduos, não queria perceber sua vinculação social. Expressão máxima desta visão individualista do homem é o conceito jurídico de pessoa. Um conceito igualitário que nivela as diferenças entre os homens: pessoa é, da mesma forma, tanto o proprietário quanto quem nada possui, tanto o indivíduo débil quanto a gigantesca pessoa jurídica. Nele estão incluídos: a igualdade jurídica, a igual liberdade em relação à propriedade, a igual liberdade de contratar. Mas, na realidade jurídica, a livre propriedade nas mãos do economicamente forte é profundamente diferente do que ocorre quando ela se encontra nas mãos do socialmente fraco. A livre propriedade do proprietário deixa de ser livre disposição das coisas para transformar-se em livre disposição das pessoas: quem manda nos meios de produção tem também o poder de comando sobre os empregados. Propriedade, enquanto poder não apenas sobre as coisas, mas também sobre as pessoas, chama-se capital; livre propriedade, associada à liberdade de contratar é, na realidade social, liberdade para o socialmente poderoso comandar e servidão para o socialmente impotente. O fundamento jurídico do capitalismo é a livre propriedade conjugada com liberdade de contratar, construída sobre o conceito formal de igualdade das pessoas.

Quanto mais o capital se concentra sob forma monopolística, tanto mais se transforma em poder sobre as pessoas – não apenas sobre o trabalhador, mas também sobre o consumidor – que pode ser pressionado pelos preços – e sobre o concorrente – do qual podem ser desviados fornecedores e clientes.

A pressão do direito de propriedade sobre os não proprietários resulta da concepção jurídica do livre contrato. A liberdade contratual, na realidade social, transforma-se, para os socialmente poderosos, em liberdade de se impor e, para os socialmente impotentes, em servidão. Somente em uma sociedade de pessoas com igualdade de poder social, em uma sociedade de pequenos proprietários, poderia a livre propriedade conservar seu caráter original de livre disposição das coisas e a liberdade contratual poderia conservar seu caráter original de igualdade para todos (3). A evolução do capitalismo fez, no entanto, com que a realidade jurídica estivesse cada vez mais em contradição com a forma jurídica: no que se refere a esta, estão previstas somente pessoas iguais, com igual propriedade e igual liberdade de contratar; mas, na realidade jurídica, em lugar de pessoas iguais, encontramos possuidores e não possuidores; e, em lugar de liberdade contratual para todos, encontramos a liberdade para os economicamente fortes imporem suas condições e a submissão dos economicamente fracos – a servidão à propriedade e, com ela, a transformação essencial da propriedade, que deixa de significar poder sobre as coisas e passa a significar domínio sobre as pessoas .

Em face de tudo isso, a teoria do Direito social revela significado quádruplo: em primeiro lugar, evidencia, por trás da abstração niveladora do conceito de pessoa, as peculiaridades individuais, o poder e a servidão sociais; não mais reconhece apenas pessoas, mas leva em consideração empregador e empregado, funcionários e trabalhadores; no Direito Penal, não reconhece só delinqüentes, mas criminosos habituais e de ocasião, recuperáveis e irrecuperáveis. Com a visualização de poderosos e impotentes, são reconhecidas as individualidades, possibilitando-se o auxílio social aos necessitados e a limitação dos poderes dos socialmente poderosos. Enquanto a concepção individualista do Direito se fundamentava na igualdade, fundamenta-se o Direito social na compensação; lá dominava a Justiça comutativa e aqui a distributiva. Todavia, quando o indivíduo é concebido como ser social, a mais privada das relações jurídicas deixa de ser considerada apenas questão daqueles que dela participam e passa a ser considerada relação social; por trás das pessoas privadas que dela participam surge como terceiro e mais importante partícipe a figura poderosa da sociedade, do Estado, que a observa, está pronto a nela interferir e freqüentemente nela interfere. Com isto, no entanto – e este é o quarto aspecto do Direito social – ressurge, em novo plano, a harmonia entre forma e realidade jurídicas.

Esta manifestação essencial do Direito social manifesta-se, em sua estrutura formal, de três modos: em primeiro lugar através de uma relação hierárquica diferente entre Direito público e privado. Para a ordem jurídica individualista, o Estado é uma tênue linha protetora que contorna o Direito privado e o direito de propriedade; para a ordem jurídica social, ao contrário, o Direito privado é apenas um espaço provisoriamente liberado à iniciativa privada, sendo restringido, cada vez mais, no interior do Direito público que tudo engloba; é preservado, no pressuposto de que a iniciativa privada estará a serviço da utilidade comum, mas é suprimível se esta expectativa não se consumar. Em uma ordem jurídica social, o Direito público e o Direito privado não encontram limites precisos entre si, mas, ao contrário, sobrepõe-se um ao outro. Esta interpenetração do Direito privado com o Direito público realiza-se, acima de tudo, no novo segmento jurídico do Direito do Trabalho e do Direito Econômico, nos quais eles são evidentemente distintos, mas inseparáveis. Em conexão com a publicização do Direito privado surge, em terceiro lugar, a penetração do conteúdo de deveres sociais no direito subjetivo privado. Por isso a Constituição do Reich apropria-se da teoria de Goethe sobre a propriedade e o bem comum(4). A propriedade obriga. Seuuso deve estar a serviço do bemcomum(art. 153). O Direito social apresenta estrutura semelhante à do direito feudal da Idade Média. Também este facultava direitos sob o fundamento objetivo da prestação de serviços, com a natural conseqüência de que o direito não era concedido graças ao serviço, mas o serviço o fundamentava, enquanto o direito gozava das características de privilégio. Mas o Direito social protege-se contra semelhante desnaturamento baseado em uma legislação segundo a qual direitos não exercidos na medida das obrigações são limitados ou suprimidos. Por isso, na Constituição de Weimar, deixou-se pendente sobre a propriedade privada a espada de Dâmocles da desapropriação, ou seja, da socialização (arts. 153, 155 e 156).

O que foi até aqui exposto de forma geral pode ser mostrado de forma esquemática em cada ramo do Direito. Em primeiro lugar, no DireitoPrivado (5). Evidentemente a nova orientação social não conseguiu penetrar a rígida estrutura de nosso Direito Civil, de orientação classista burguesa, ou seja, individualista. Mas é inegável que, embora tenha sido mantida a velha estrutura normativa, operou-se significativa modificação funcional, especialmente no mais individualista dos segmentos jurídicos, aquele que foi o pioneiro na experiência do Direito individualista: o DireitoComercial. Já foi demonstrado suficientemente como, por exemplo, sem nenhuma alteração legislativa, as sociedades anônimas modificaram-se em sua essência e em seus fundamentos; o que domina a vida da sociedade não é mais o interesse individual do acionista, mas o fim econômico da sociedade; os acionistas transformam-se, cada vez mais, em meros titulares de obrigações e os funcionários em agentes fiduciários não só do capital que lhes foi confiado, mas também do interesse geral (6). A nova concepção social não encontrou expressão legal no âmbito dos dois antigos códigos civis, mas encontrou-a nos novos segmentos jurídicos gerais que foram criados: o Direito do Trabalho e o Direito Econômico. O essencial, para estes, não está em voltar-se para o indivíduo isolado, mas para o homem concreto e socializado, de forma que se pode encontrar esquematicamente a diferença entre estes dois setores jurídicos no fato de que o Direito do Trabalho preocupa-se com a proteção do socialmente impotente e o Direito Econômico com a limitação daqueles que detêm a supremacia social.

A vinculação do Direito do Trabalho com o homem socializado não necessita de prova minuciosa. Ele está preocupado em destacar, por trás do conceito de igualdade das pessoas, tipos como o empregador e o empregado, o trabalhador e o funcionário; está preocupado em realçar o significado jurídico da socialização do trabalhador individual sob a forma de sindicato e de operariado; em colocar na ótica jurídica, como fundamentos do contrato individual de trabalho, o acordo e a convenção coletiva. O homem associado e a própria associação, até então ignorados pelo Direito individualista, ingressam no plano jurídico através do Direito do Trabalho.

Enquanto o Direito do Trabalho nos oferece hoje um sistema completo, o DireitoEconômico é, até agora, apenas um programa, um fragmento, o que se pode verificar claramente na legislação sobre cartéis e inquilinato, nas limitações ao lock out e nas obrigações de expandir-se, bem como na sindicalização compulsória. Assenta-se sobre a concepção, amargamente experimentada no terrivelmente estreito período da economia de guerra, segundo a qual qualquer relação de direito privado está incrustada no todo da economia e da sociedade, no qual produz conseqüências ainda que remotas; segundo a qual o exercício da propriedade não diz respeito exclusivamente ao proprietário; e segundo a qual a celebração de um contrato não interessa apenas às partes contratantes, mas também a um terceiro maior do que eles: a sociedade e sua organização – o Estado. Quando, no interesse da sociedade, o Estado interfere, regulando e organizando as relações de Direito Privado, surge o Direito Econômico (7). A essência, portanto, do Direito Econômico consiste em reconhecer e tratar as relações jurídicas individuais como sociais.

Em outro importante setor do Direito Privado – o Direito de Família – dá-se, todavia, uma transformação cuja tendência parece contradizer o Direito Econômico. Enquanto neste a evolução respeita os vínculos sociais, o Direito de Família, ao contrário, parece ignorar e rever os relacionamentos sociais tradicionais. Objetivando efetivar a completa equiparação entre marido e mulher, facilita o divórcio e, objetivando efetivar a equiparação entre filhos legítimos e ilegítimos, adota a teoria segundo a qual o casamento, ou o estado de casados, não é uma instituição duradoura entre os esposos, mas apenas uma relação contratual válida na dependência da transitória vontade de cada contratante. Com a extinção do fideicomisso familiar e a condenação do direito sucessório ilimitado, em favor de um direito sucessório comunitário ou estatal, revela-se que o conceito de família, que unia parentes distantes, retrocede em favor de um conceito de família como relação pessoal entre seus membros – é a grande família superindividualista contra a pequena família individualista. Mas precisamente desta forma manifesta-se ao menos a tendência do Direito social de adaptar as formas jurídicas à realidade social. O desmonte do Direito matrimonial e de Família reproduz a evolução do capitalismo que destrói o lar, a fazenda e a família como unidades econômicas; que separa profissionalmente os membros da família transformando-os em participantes de outras unidades econômicas; tudo isto, ao colocar o homem na fábrica, a mulher no trabalho doméstico de terceiros, o filho no escritório, a filha na loja, talvez nas grandes unidades comerciais de consumo, roubando-os cada vez mais da família onde se ocupavam com atividades específicas, como lavar, assar pão, tecer e cuidar do jardim. Assim considerada, a evolução do Direito de Família não se mostra como uma dessocialização das antigas relações sociais, mas como a substituição de uma formação social por outra. O verdadeiro significado da evolução do Direito de Família torna-se evidente a partir da análise do direito à educação que, no Código Civil, fundamenta-se no pátrio poder, ou seja, tem por origem os direitos dos pais. A Constituição alemã (art.120) define-o como supremodever e direitonatural dos pais, cujoexercício é controlado pelacomunidadeestatal. Mas o Código e o Juizado de Menores revelam, senão em suas manifestações ao menos em sua regulamentação, o deslocamento do direito à educação do pátrio poder para a comunidade estatal. De acordo com suas disposições, a comunidade é, em última instância, a titular do direito à educação familiar, que a confia aos pais, no pressuposto de que eles a exercerão em conformidade com os interesses da comunidade, e revoga a delegação quando este interesse for frustrado. Assim o novo direito à educação limita-se à formação social, que procura ampliar, ajustando-se, portanto, à evolução do Direito social.

Ao conceito de pessoa no Direito Privado corresponde, no DireitoPenal, o de agente. Da mesma forma como, no Direito Privado tradicional, o trabalhador era o possuidor da força de trabalho carente de individualidade, era o vendedor da mercadoriatrabalho, no Direito Penal tradicional o delinqüente não era senão o infrator, carente também de individualidade. Na antiga concepção da relação de trabalho vendia-se a força de trabalho como mercadoria e, da mesma forma, na antiga concepção do Direito Penal, punia-se o delito (8); e assim como o novo Direito do Trabalho reconhece que a força de trabalho não é separável do homem, mas é o próprio homem visto sob determinado aspecto, o novo Direito Penal reconhece que o delito não é algo separável do delinqüente, mas, novamente, é a pessoa integral, sob determinado ponto de vista. O novo Direito Penal já foi rotulado sob o lema não o fato, masseuautor, embora melhor fora referir não o autor e sim o homem. Assim ingressa no campo do Direito o homem concreto com suas particularidades psicológicas e sociais. Ao mesmo tempo, o conceito de delinqüente divide-se em múltiplos tipos psicológicos e sociológicos: delinqüente habitual e de ocasião, corrigíveis e incorrigíveis, adultos e juvenis, plenamente e relativamente imputáveis. Por isso denomina-se a nova escola do Direito Penal escola sociológica, porque trouxe para o âmbito do Direito fatos que, até então, pertenciam exclusivamente à Sociologia.

A nova concepção do Direito Penal reflete-se também no Direito Processual Penal. O aperfeiçoamento do processo penal teve lugar, até agora, no seu aspecto contencioso, no qual as duas partes, contrapondo suas interpretações do material probatório, ofereciam condições para uma decisão alternativa: o acusado é o autor deste fato, ou não? Ao futuro processo penal acrescenta-se a difícil tarefa de elaborar a figura típica do criminoso; não se trata mais da mera decisão alternativa entre anjo e demônio, mas da cuidadosa análise de inúmeras possibilidades de interpretação, do esboço de uma imagem com inúmeros traços, todos eles determinantes do resultado final; traços que, uma vez alterados, dão à imagem final aspecto diferente. Um novo órgão para esta nova missão do processo penal encontra-se em desenvolvimento: a assistência social judiciária; e a dificuldade para integrar este órgão no processo penal tradicional demonstra que, com ele, foi virada nova página na história do processo penal, completou-se a transição do processo penal liberal para o processo penal social (9).

Do mesmo modo manifesta-se a evolução do Direito Privado no processocivil. No momento em que a relação jurídica deixa de ser pura questão de Direito Privado, pura questão de oportunidade para seus integrantes, a lide não pode mais continuar sendo apenas uma disputa privada entre a partes. À posição passiva do Estado liberal relativamente ao livre jogo da Economia correspondia exatamente, no processo civil, a posição passiva do juiz no conflito entre as partes. A essência do processocivilsocial, como diz Franz Klein, consiste, no entanto, no fortalecimento do papel do juiz relativamente às partes e seus advogados e no estabelecimento do predomínio de sua responsabilidade no processo. Em última análise, no entanto, a concepção jurídico-social do processo civil emerge de nova concepção do homem: as partes, no processo civil, não são mais tidas como pessoas firmemente orientadas por seus interesses, perfeitamente conscientizadas, mas são aceitas como deficientes, carentes de ajuda, nem sempre adequadamente auxiliados por advogados sobrecarregados de trabalho – são individualidades sociais concretas.

Particularmente evidente é esta evolução em direção ao homem socializado na organizaçãojudiciária, na velha e na nova concepção do juiz laico. O juiz laico, no antigo foro de leigos – os jurados e vogais – eram cidadãos abstratos, dos quais o juiz ignorava a profissão e a classe a que pertenciam, embora jamais pudessem ser eliminadas as conseqüências de tais condicionamentos. O juiz leigo do novo estilo, no entanto, integra o Tribunal do Trabalho como homem social e assume a cadeira de juiz exatamente enquanto empresário, empregado ou funcionário. O desdém que  indiscutivelmente atingiu a confiabilidade dos antigos juízes laicos e a crescente confiança depositada por amplos círculos populares sobre os juízes laicos do novo estilo evidenciam que os primeiros pertenceram a uma época ultrapassada e os últimos participam de uma nova época social.

Até nas alturas do DireitoPúblico pode-se visualizar a transmutação da ordem jurídica rumo à individualidade socializada. A ideologia democrática tradicional era (10) individualista, orientada pela soberania popular correspondente à soma das individualidades; orientada pela maioria e a minoria enquanto soma de resultados eleitorais ocasionais, enquanto resultante do maior ou menor numero de pessoas; ignorava totalmente os laços sociais que vinculavam e se sobrepunham a estes homens, tais como os grupos, as classes e os Partidos. O Estado popular assemelhava-se a um ladrilho formado por indivíduos iguais e livres; assemelha-se hoje a um conjunto de silos formado por grupos, classes e Partidos. A velha ideologia buscava expressar-se no princípio da igualdade de todos aqueles que têm um rosto de homem; a nova, quase ao contrário, concebe a democracia como escolha dos líderes, como organização da aristocracia; vê o chefe e seus seguidores como integrantes do Estado popular, e não mais como individualidades isoladas. Esta nova ideologia procura expressão jurídica. A organização parlamentar, em um processo que, sem dúvida, encontra-se ainda em seu começo, garante aos Partidos o direito proporcional de votos e às facções partidárias tratamento como se fossem organismos jurídicos (11).

Exatamente este panejamento da evolução do Direito social, relativamente ao Direito público, torna transparente o risco do pensamento jurídico social: ele consiste em partir não de formas sociais reais, mas de puras construções sociais a que se aspira, como se já existissem. Esta é exatamente a essência da idéia de um Estado corporativo, presente em todas as comunidades de trabalho, corporações talvez desejáveis, mas que certamente não são reais. Assim, a famosa decisão do Tribunal alemão de 6 de fevereiro de 1923 (tomo 106, p. 272 e sgs), sobre a greve parcial, tratou de uma fictícia e desejável comunidade como se ela fosse uma realidade, ao admitir que, entre o empregador e seus trabalhadores, há uma comunidade de trabalhoque constitui o fundamento da empresa. A dominante associação que caracteriza a empresa capitalista foi erroneamente interpretada como fictícia comunidadesocial de trabalho e empresa, como cooperativa (12).

São formas indevidas de uma idéia que não pode, apenas por isso, ter sua validade colocada em jogo. A evolução social do Direito, e isto é o que há de grande e impressionante nele, não se apresenta como realização de um programa, mas como auto-realização de uma necessidade histórica supraconsciente, que existia antes de ser conhecida, que é mais forte do que todas as resistências que lhe são opostas; mais consciente de seus objetivos do que todos os mal-entendidos de todos os homens. A marcha inconfundível e irresistível desta evolução ainda haverá de encher de satisfação a todos aqueles que a buscam, de todo o coração, como um objetivo desejado, porém distante – o objetivo de uma organização social mais justa, que não reconheça, na relação de trabalho, senhores e subordinados, mas apenas cidadãos que trabalham.

(1) Publicado na Revista do Direito e da Justiça Hanseática (Hanseatischen Rechts- und Gerichtszeitschrift), setembro de 1930. Schlegelberger – Die Entwicklung des deutschen Rechts in den letzten 15 Jahren (A Evolução do Direito alemão nos últimos 15 anos) – 1930, p. 41 – fala de uma transformação da atitudeindividualista do Direitoemumpensamentocomunitário. Geiler – Gruchots Beiträge – (Contribuições de Gruchot), vol. I, 68, p. 612 e sgs. afirma que estamos assistindo o Direito e a Economia de todos os estados da cultura darem passagem a uma síntese da tese capitalista-individualista para a antítese socialista-capitalista; e Wertheimer – Entwicklungstendenzen im deutschen Privatrecht (Tendências do desenvolvimento do Direito Privado alemão) – 1928, p. 31: a época denominada liberal..., essencialmente, acabou. A idéia de comunidade,,, acordou-se novamente...e  uma erasocial está nascendo. Em sentido contrário, denomina-a Hedemann – Reichsgericht und Wirtschaftsrecht (Justiça estatal e Direito econômico), 1929, p. 2, de forma estrita e absolutamente dirigida para um determinado objetivo: fala-se de uma épocasocial e de umpensamento voltado para o coletivo e correlatamente de umDireitosocial e coletivista comoespelho do espírito de uma época e comotraço predominante do presente.

(2) Vide RadbruchDer Mensch im Recht (O Homem no Direito) 1927; SinzheimerDer Wandel im Weltbild des Juristen (Modificação da Imagem do Jurista) – Zeitschrift für soziales Recht (Revista de Direito social) – ano I, p. 2 e sgs.

(3) Fichte traduz este fato sociológico-jurídico em uma teoria filosófico-jurídica ao fundamentar o direito de propriedade a partir do reconhecimento recíproco da propriedade em um fictício contrato de propriedade, no qual apenas proprietários são partes, e que não obriga os não proprietários. Cadaum é titular de suapropriedade, na medida e sob a condição de quetodos os cidadãos possam viver do que é seu. A partir do momentoemquealguém se tornamiserável, a parte da propriedadenecessáriapara tirá-lo da misérianãopertence a maisninguém, poispertence juridicamente aos miseráveis.

(4) Essa contradição entre a forma e a realidade jurídicas na ordem econômica capitalista é o tema de Karl Renner em Die Rechtsinstitute des Privatrechts und ihre soziale Funktion (Os institutos jurídicos do Direito Privado e sua função social), 1929.

(5) Wanderjahre (Anos de transição), Lv. I. cap. 6. Esta e outras considerações de Goethe sobre a propriedade foram interpretada no passado (distorcendo tanto o pensamento dele quanto do socialismo) como socialistas. Vide Ferd. Gregorovius – Goethes Wilhelm Meister in seinen sozialistischen Elementen (Mestre Wilhelm Goethe em seus elementos socialistas), 2ª ed., 1855; Karl Rosenkranz – Goethe und seine Werke (Goethe e suas obras) – 2ª ed. 1856, p. 353 e sgs; Karl Grün – Über Goethe vom menschlichen Standpunkte (Goethe sob o ponto de vista humanístico), 1846, p. 281 e sgs. Grün resume o significado do poema de Goethe – Katechisation (Catequese) com as seguintes palavras: la proprieté c’est le vol; e acrescenta: quando falei isso a Proudhon, este acreditava ter lido pouco de Goethe, mas acreditava tratar-se de ummoçointeligente: je l’ai toujours cru un garçon intelligent.

(6) Vide Hedemann – Das bürgerlisch Recht und die neue Zeit (O Direito Civil e a atualidade), 1919.

(7) Vide Geiler – Die wirtschaftliche Methode im Gesellschaftsrecht (O método econômico no Direito societário) – Gruchots Beiträge, 68 – 1927, p. 593 e sgs.

(8) Hans Goldschmidt fundamenta esta concepção do Direito Econômico como o Direitopróprio da Economia organizadaReichswirtschaftsrecht (O Direito da Economia Política) – 1923, p. 6 e sgs.

(9) Vide E. Paschukanis – Allgemeine Rechtslehre und Marxismus (Teoria Geral do Direito e Marxismo), 1929, p. 149 e sgs.

(10) Vide Radbruch – Strafrechtsreform und Strafprozessreform (A Reforma do Direito Penal e do Direito Processual Penal) – em Juristische Rundschau (Revista Jurídica), 1928, p. 189 e sgs.

(11)Vide Radbruch – Die politischen Parteien im System des deutschen Verfassungsrechts (Os Partidos Políticos no sistema constitucional alemão), em Anschütz-Thoma: Handbuch des deutschen Staatsrechts (Manual do Direito estatal alemão), 1929, p. 285 e sgs.

(12) Vide Fraenkel – Zehn Jahre Betriebsrätegesetz (Dez anos da Lei sobre Comissões de Fábrica), em Gesellschaft Jg. (Sociedades),VII, 1930, p. 117 e sgs.