VII

Os fins do Direito (1)

 

Quatro velhos adágios apontam para os princípios fundamentais do Direito, embora, ao mesmo tempo, fortes antinomias reinem em relação a eles. Diz o primeiro: salus populi suprema lex est (o bem-estar do povo é a suprema lei), ao que responde o segundo: iustitia fundamentum regnorum (a justiça é o fundamento dos impérios).A justiça, e não o bem comum, apontada como fim supremo do Direito. Não uma justiça suprapositiva, mas a justiça positiva, a legalidade, como consta do terceiro adágio: fiat iustitia, pereat mundus (faça-se justiça e dane-se o mundo) – a obediência à lei acima do bem comum. Ao que responde o quarto adágio: summum ius, summa iniuria (o excesso no direito é o máximo de injustiça) – a aplicação rigorosa da lei pode levar à mais cruel das injustiças. Portanto: bemcomum, justiçae segurançajurídica aparecem como supremos objetivos do Direito, não em perfeita harmonia, mas em acentuado antagonismo.

Aceita-se geralmente que o Direito deve servir ao bemcomum, porém, sobre o significado de bem comum contradizem-se as diferentes filosofias da vida, as diversas teorias sobre o Estado e os programas dos Partidos Políticos. Com um significado social, pode-se entender bem comum como o bem de todos ou do maior número possível de indivíduos – a maioria, a massa. Pode-se, de forma orgânica, entender bem comum como o bem dos integrantes de um Estado, ou povo, o que é mais do que a soma das individualidades. Pode-se, finalmente, entender bem comum, de um ponto de vista institucional, como a busca da realização objetiva de valores, não no interesse dos indivíduos nem no interesse de sua totalidade, mas no seu próprio interesse: a ciência e a arte, com seus valores específicos, são exemplos significativos desta concepção. Mas seja qual for a forma de conceituar bem comum, seu significado estará em contradição com o que Del Vecchio escreveu certa vez: o direito de uma pessoa é tãosagradoquanto o direito de milhões de homens (2). Chamamos liberalismoa doutrina que reconhece ao indivíduo, em determinadas situações, o direito de defender-se contra a maioria e até contra a totalidade, resistindo aos objetivos por elas estabelecidos. Esta doutrina fundamenta-se nos outros fins que servem ao Direito além do bem comum: na justiça e na segurançajurídica. Estes valorizam a igualdade e a liberdade do indivíduo, contra os exageros do bem comum. Não existe, é óbvio, prova de que o Direito deva obrigatoriamente proteger os fins liberais, ao lado dos fins sociais, orgânicos e institucionais – embora não se deva esperar por nenhuma prova absoluta no terreno do dever. Mas não é menos verdade que não pode pretender o nome de Direito uma ordem que sirva exclusivamente ao bem comum e impossibilite a defesa dos indivíduos, a defesa de seus interesses contra ele; em tal circunstância, seria impossível uma ciência do Direito; mantido este pressuposto, seriam inexplicáveis inúmeros fenômenos práticos hoje reconhecidos, tais como a independência do Tribunais, os direitos subjetivo públicos e o Estado de Direito.

Este é o tema de minha exposição. Particularmente na época em que vivemos, o grave significado dos problemas aqui apresentados deve merecer especial consideração, pois é tendência em quase todo o mundo estruturar a ordem social exclusivamente em função do bem comum, ignorando os evidentes princípios da justiça e da segurança, e destruindo, desta forma, a própria idéia de Direito.

Comecemos pelo conceito de justiça. Não por aquele conceito com o qual sintetizamos tudo o que esperamos do Direito e que pode ser reduzido fundamentalmente ao conceito de correção, mas por um conceito específico de justiça que qualifica o Direito em face de outras obrigações.

Aristóteles definiu categoricamente: justiça é igualdade. Não tratamento igual para todos os homens e casos, mas igualdade quanto à medida de tratamento. Diversidade de tratamento, de acordo com a diversidade entre as pessoas e os fatos. Portanto, não absoluta igualdade no tratamento, mas proporcionalidade: suum cuique (a cada um o seu). Esta é a justiça distributiva de Aristóteles. Sua iustitia commutativa é apenas uma aplicação dela, ou seja, é a justiça distributiva aplicada a pessoas consideradas iguais. Somente pressupondo a igualdade das partes pode-se exigir igualdade entre prestação e contraprestação – pois se a uma delas fosse concedido mais do que ela prestou, ela seria beneficiada em relação à outra (3). Se iustitia commutativa é a aplicação da justiça a pessoas cuja desigualdade é considerada irrelevante, equidade significa, ao contrário, a justiça que se aproxima, tanto quanto possível, das particularidades mais individualizadas do caso concreto. Mas, mesmo neste extremo de particularização, a justiça continua sendo a aplicação de uma medida universal. Pressupõe um mínimo de semelhança entre pessoas e fatos, abstraindo de sua individualidade mais profunda, e trata, pois, como iguais, situações que, na realidade, são diferentes. Apesar de seu caráter proporcional, justiça significa igualdade de tratamento jurídico a grupos de pessoas ou fatos mais ou menos amplos, ou, o que dá no mesmo, a aplicação de regras mais ou menos gerais na regulamentação destes comportamentos.
 
O que explica a valorização da igualdade no comportamento jurídico, ou o caráter geral da norma? A resposta foi tentada a partir da necessidade de conciliar a inveja universal – mas não explica o sentimento de justiça das pessoas não envolvidas no problema. Foi procurada a partir do sentimento estético da simetria – mas outra vez não explica a violência elementar e explosiva do sentimento de justiça. Foi considerada exigência do bem comum – iustitia fundamentum regnorum (a justiça é o fundamento dos impérios) – pois a injustiça gera perturbação do equilíbrio social e leva ao perigo da violência revolucionária. Mas, desta forma, confunde-se causa e efeito: uma situação não é injusta porque provoca desequilíbrio social, mas exatamente ao contrário: provoca o desequilíbrio social por ser injusta. Na verdade, do ponto de vista psicológico, a justiça só pode ser considerada um sentimento primordial e inevitável; do ponto de vista filosófico, deve ser considerada um valor entre os demais valores absolutos como o bem, a verdade e a beleza.

É impossível deduzir uma norma jurídica exclusivamente da justiça, como pode ser demonstrado por um exemplo do Direito Penal. A justiça determina que deve ser imposta pena grave a quem revela culpa grave e pena leve a quem age com culpa mais leve. Não afirma, no entanto, que o homicídio seja mais grave do que o roubo. Cria, porém, instrumentos para que se possa dosar a culpabilidade, que será maior ou menor, em função do grau de perigo oferecido ao bem comum. Não diz também como o culpado deve ser castigado – se o assassino deve ser torturado na roda e o ladrão enforcado ou se o primeiro deve ser recolhido à prisão perpétua e o segundo à prisão temporária. Não cria, também, o sistema de penas, mas só determina o tipo de pena aplicável, dentro de um sistema de punições previamente estabelecido: a espécie de pena em concreto deverá ser determinada em função da importância para bem comum. A justiça só estabelece, pois, a relação entre determinada pena e seu grau, com base em um sistema de penas dado. O conceito de culpa e o sistema de penas devem ser estabelecidos, então, a partir da idéia de bem comum. A justiça, portanto, define apenas a punibilidade relativa, não a absoluta. É também em razão dela que este conceito relativo resulta de uma medida geral – o conceito de culpa – delimitada por uma escala geral de penas e de sua graduação. Este exemplo revela, de um lado, o caráter relativo e, de outro, a natureza geral da justiça.

O caráter relativo da justiça significa que ela deve relacionar entre si, comparar e conciliar, os indispensáveis conceitos de maioria de pessoas, de situações jurídicas e de interesses em conflito. Justiça é, essencialmente, solução de conflitos. Le problème de la justice – afirma Georges Gurvitch – ne se posequesi l’on admet la possibilite d’un conflit entre des valeurs morales equivalentes. La justice suppose essenciellement l’existence de conflits; elle est appelée à harmoniser les antinomies; dans une ordre harmonique par avance..., la justice est innaplicable et inutile.  (O problema da justiça – diz Georges Gurvitch – não se coloca senão quando é admitida a possibilidade de um conflito de valores morais equivalentes. Supõe essencialmente a existência de conflitos; deve harmonizar antinomias; em uma ordem harmônica pré-estabelecida... ela seria inaplicável e inútil) (4). Muito particularmente, a justiça não é pensável nas relações entre comunidade e indivíduo quando se afirma a impossibilidade de conflito entre estes, reconhecendo-se a supremacia incondicional do bem comum sobre qualquer interesse individual. Contra tal concepção levantou-se Del Vecchio de forma agradavelmente decisiva: A puranegação apriorística da oposição existente..., afirmar, porexemplo, que o Estado é a únicarealidade e o indivíduo é porele absorvido ou é comele identificado, não é umbommétodo... Estado e indivíduosãodoiselementos da realidadeque, embora possam e devam estaremharmonia e de acordo, não podem ser negados, pois existem. A afirmação... segundo a qualumououtro destes elementos, porserirrealouidêntico ao outro, não deve serlevadoemconsideração... de fato, nãonenhumpassoemdireção à solução do problema (5). A idéia de justiça pressupõe a possibilidade de tensão entre a comunidade e o indivíduo, que ela exatamente tem por tarefa superar. É um contrapeso individualista-liberal à idéia superindividualista de bem comum.

A justiça transfere seu caráter relativo ao conceito de Direito no qual predomina: Direito é também solução de conflitos. Por isso, a noção de Direito participa da natureza geral da justiça: Direito é solução de conflitos a partir de normas gerais, afirmação que pode ser comprovada por uma dedução a partir do conceito de Direito (6) – aqui, basta uma prova indireta: a norma jurídica não poderia distinguir-se das demais normas se não fosse uma forma de solução de conflitos e não possuísse caráter geral. Somente quando ela se considera uma forma de solução de conflitos pode distinguir-se das puras normas de orientação a funcionários públicos; somente quando nela se reconhece o caráter geral pode distinguir-se da sentença e do ato administrativo. Uma norma destinada a servir exclusivamente ao bem comum é uma determinação administrativa, não Direito. Estes exemplos demonstram também que o fenômeno ao qual é necessário negar a qualificação de norma jurídica não perde, de forma alguma, sua justificação. Uma ordem contra determinada pessoa pode justificar-se como medida de exceção e não será necessariamente arbitrária. Não tem caráter jurídico. Não perde apenas o rótulo jurídico, mas também a indescritível ênfase que vibra a partir deste nome e a força moral que dele emana. Por isso os Partidos Políticos vitoriosos transformam sempre seus interesses particulares em normas jurídicas de caráter geral – e a partir desta transformação buscam lograr conseqüências muito concretas.

Permito-me oferecer outro exemplo histórico. A liberdade, em qualquer sentido, era uma necessidade e uma reivindicação da burguesia ascendente, formulada como exigência jurídica fundada no Direito Natural. Por isso a burguesia não podia exigi-la exclusivamente para si, precisava fazê-lo de forma geral, ou seja, para todos. Mas esta liberdade como direito, exigida e conquistada sob forma geral, trouxe também em seu seio a liberdade de associação para a ativa classe dos trabalhadores, transformando-se em instrumento de luta exatamente contra a classe cujo interesse pela liberdade se transformara em direito. Em virtude da forma jurídica que normalmente passam a adotar as reivindicações políticas, os poderosos, em geral, só podem impor encargos sobre seus dominados quando os assumem também; da mesma forma, só podem reivindicar vantagens quando estão dispostos a assegurá-las também a seus subordinados. Na verdade, essa generalização pode continuar sendo mera aparência, pois (nas palavras irônicas de Anatole France), a lei, emsuamajestosaigualdade, proíbe ricos e pobres de mendigar nas ruas, dormirembaixo de pontes e roubarpãomas pode também adquirir significado muito real, como na hipótese da liberdade de associação. Por isso o Direito de Classe, pelo fato de ser Direito, ou seja, por ter assumido a forma da generalidade e da igualdade, pode constituir-se em algo valioso, ao menos em certa medida, também para os oprimidos, as minorias, os fracos e os excluídos.

Em suma: a justiça distingue-se claramente de bem comum e, como fim do Direito, encontra-se até em certo relacionamento conflituoso com ele. Pressupõe a situação de conflito, ao contrário da idéia de bem comum que não lhe dá atenção ou até a nega. A justiça coloca na balança bem comum e interesses jurídicos individuais, enquanto, ao contrário, a idéia de bem comum mantém seu caráter individualista-liberal. Caracteriza-se ela pelas marcas da igualdade e da generalidade, que não desempenham nenhum papel em relação ao bem comum. Finalmente, a idéia de justiça imprime seu caráter no conceito de Direito, ao reconhecê-lo como forma de solução de conflitos através de normas gerais. Exclusivamente a partir da idéia de bem comum, não pode ser deduzido o conceito de Direito. Não há dúvida de que a justiça é essencial ao bem comum – como fundamentum regnorum. Sua essência não decorre, todavia, desta utilidade para o bem comum; ao contrário, ela é útil a ele por sua própria legitimidade – exatamente como a ciência e a arte, que somente o servem quando, sem nenhuma preocupação com ele, realizam suas próprias leis de verdade e beleza. Portanto, para compreender a justiça dentro de um conceito mais amplo de bem comum, deve-se distingui-la imediatamente do conceito restrito de bem comum.

Semelhante é o resultado da discussão sobre segurançajurídica, aqui exposta. Em primeiro lugar, é necessário determinar o conceito de segurança jurídica, que pode ser entendido de três maneiras (7):

1 - Como segurança por meio do Direito: segurança contra o homicídio, contra o roubo e o furto, segurança no trânsito etc. Segurança jurídica, neste sentido, é elemento do bem comum, nada tendo a ver, portanto, com nosso tema, embora, naturalmente, seja ela afim ao que entendemos por segurança jurídica, pois pressupõe que haja segurança no próprio Direito.

2 - A segurança do Direito exige o firme conhecimento da norma jurídica, a prova cabal dos fatos dos quais sua aplicação depende e a correta execução do que foi promulgado como Direito. Trata-se da certeza do Direito vigente em determinado momento, não de sua validade. Certeza que seria ilusória se, por qualquer motivo, a qualquer tempo, pudesse o legislador eliminá-la. Por isso, a certeza de determinado Direito vigente precisa ser completada, ao menos em certa medida, pela

3 -segurança do Direito contra modificações, através de limitações previstas no sistema legislativo – como a divisão dos Poderes e as dificuldades impostas às alterações constitucionais –. Mas segurança jurídica, neste terceiro significado, normalmente, não diz respeito ao Direito objetivo e sim ao subjetivo: é a proteção ao direito adquirido. Este princípio, conservador e, em determinadas circunstâncias, reacionário, não tem relação com nossa matéria. Precisamos, no entanto, abordá-lo porque, sem ele, a segurança do Direito em vigor, em si mesma, seria uma ilusão; é necessária a segurança contra modificações arbitrárias, a qualquer momento, ou, como já afirmamos, é necessária uma certa dose de segurança contra alterações do Direito.

Não são necessárias longas provas para demonstrar que a segurança jurídica é diferente de bem comum, ao qual, com freqüência, até se opõe – aquilo que, no interesse da segurança, muitas vezes é summum ius, sob o ponto de vista do bem comum é summa iniuria. A segurança jurídica, por vezes, permite que a lei e o Direito se transformem em doença incurável. Por outro lado, segurança jurídica e justiça mantêm estreito relacionamento entre si, confundindo-se até. A segurança jurídica exige a mesma generalidade das normas que integra a essência da justiça: só a norma geral pode regulamentar, com anterioridade, casos vindouros e fundamentar o Direito justo para o futuro. Direito incerto, além disso, é, ao mesmo tempo, Direito injusto, pois não pode assegurar igualdade de tratamento a casos futuros assemelhados; pode-se, por isso, traduzir a idéia de segurança jurídica como igualdadeperante a lei, como afirmou Lord Bacon: legis tantum interest ut certa sit ut absque hoc nec iusta possit (a certeza da lei é tão importante que, sem ela, a lei não conseguiria ser justa) (8). A segurança jurídica comparte também com a justiça seu caráter liberal individualista: não significa segurança do Direito no interesse do Direito, mas segurança do Direito no interesse individual – contra o arbítrio e, neste sentido, em defesa da liberdade.

A segurança do Direito, ao contrário da justiça, não é um valor absoluto e indispensável. Por mais forte que seja a já referida tensão entre ela e o bem comum, em sentido restrito, seu valor resulta de sua utilidade para o bem comum, em sentido amplo. Utilidade que foi destacada, de forma impressionante, por Jeremy Bentham – o maior panegirista da segurança, ao lado de Ludwig Knapp, recentemente sacados do esquecimento por Luigi Secco (9). Bentham via na segurança jurídica a propriedade essencial da civilização, a diferença entre a vida dos animais e a dos homens, pois é ela que possibilita fazer planejamentos para o futuro, trabalhar e economizar. Só ela pode garantir que a vida não seja apenas uma série de momentos particulares, mas uma sucessão contínua. Só ela estabelece uma cadeia entre o presente e o futuro, tecida pela prudência e a previsão, projetando-se sobre as gerações que se seguirão.

Não é necessária pormenorizada exposição sobre o fato de que nós e todo o mundo nos encontramos longe daquela visão panegírica apaixonada de Bentham. Em primeiro lugar, a Escola do DireitoLivre demonstrou que a pretendida segurança quanto à decisão judicial não existe, ao menos na forma como era imaginada, pois, freqüentemente, o que determina a decisão, mais do que se pensava, não é a lei e sim a opinião do juiz. Os juízes foram então estimulados a criar o Direito, a criar uma jurisprudência imprevisível. A seguir, o legislador ampliou o espaço de competência deixado aos juízes, assim como a possibilidade de decisões inesperadas, fenômeno que recentemente foi acolhido pelas consciências em geral sob o título de fugapara as cláusulasgerais (10). Sob múltiplas formas, foi confiada ao juízo de valores dos juízes a decisão sobre todas as áreas do Direito – mesmo aquelas em que, até então, predominava rigorosamente o princípio da legalidade, como o Direito Penal, no qual se estabelecera o firme bastião da certeza jurídica através da proibição da punibilidade com fundamento na analogia. Nem falta coragem para a elaboração jurídica contra legem sempre que, em conseqüência a mudanças políticas, uma lei ainda em vigor contraria o espírito do novo regime. Em Estados nos quais os obstáculos à legislação foram eliminados pela unificação de legisladores e administradores, há o risco da fácil modificação do Direito, até como solução de situações individuais.

Como chegou o ideal da segurança jurídica a este grau de depreciação? De 1871 a 1914, experimentamos uma época de estabilidade nas relações sociais tão longa como talvez nunca tenha ocorrido na história da humanidade. O período capitalista produzia a necessária segurança jurídica: Max Weber demonstrou cabalmente que um Estado e um Direito racionais eram necessários ao capitalismo e foram por ele criados (11). Jakob Burckhardt pôde afirmar que toda a Moral daquela época estava essencialmente orientada para a segurança, de formaque, ao menoscomoregra, cumpria ao individuo tomar as maisgravesdecisõessobre a defesa de suacasa e de seubem-estar. A segurança exigia, comocondição da felicidade, a subordinação do arbítrio a umDireito assegurado pelapolícia, a regulamentação de todas as questões relativas à propriedadeatravés de leis positivas objetivas, a maiorsegurançapossível aos lucros e ao comércio. E aquiloque o Estadonão podia fazer, o regime de seguros podia. Mas Burckhardt não ocultou certa dúvida a respeito desta segurança burguesa quando afirmou que a segurança foi deficiente, emelevadograu, em várias épocas revestidas de eternoesplendor e que ocuparão posiçãodestacada na história da humanidadeaté o fim dos tempos. Em Atenas deve ter imperado o sentimento de segurança em intensidade tal que jamais será igualado no mundo (12).

A questão da segurança impactava muito mais duramente a juventude daquela época. Para comprová-lo, apresento um texto juvenil escrito em 1910, na primeira edição de minha Einführung in die Rechtswissenschaft (Introdução à Ciência do Direito): certamente podemos considerar a ciência e a ordem jurídicas, a leinatural e a norma, comogigantescalutapelaeliminação, da face da terra, do inevitável e do acaso. Mas, e se estes conseguissem realmentesairvitoriosos, tornando a vidaabsolutamente previsível, valeria a penaviver? O acaso e a imprevisão, o inesperado,  a surpresa e a decepção, o doce sofrimento do ritardando e a fascinantesensação de perigo do accelerando tornam a música sedutora e, da mesmaforma, fazem comque amemos a vida: o inesperado é a mais antiga dentre as coisas nobres do mundo (Nietzsche). Como seria a vida se não pudéssemos maisesperarpelomilagre? Aquelequenão estiver totalmente mergulhado no quotidiano preferirá sempre a felicidade da incerteza à certeza da felicidade. Embora a ordemjurídica esteja longe de dominar a incerteza, umnúmerosemprecrescente de requintadas naturezas humanas sofre aindahoje a cinzenta regularidade da vida burguesa: quantosnãoserão os homensemcujoberço, ou, digamos de formamais cuidadosa, emcujomomento do crismanão se possa descobrir o esquema de suaoraçãofúnebre? O instinto da aventura, de enfrentar o perigo, o impulso fáustico de transformar o próprioegoemego do mundo, o prazer romântico pelaindisciplina da beleza e a exuberância da existência, voltam-se contra a regularidade e a ordem do Direito e arrastam o homem, conscienteouinconscientemente, emdireção ao anarquismoafetivo.” Frágeis ecos do “viver perigosamente”, exaltado por Nietzsche.

Estes sonhos realizaram-se intensamente. A partir de 1914, a partir da primeira guerra mundial e em razão de suas dramáticas conseqüências, experimentamos permanentemente a felicidade de viver perigosamente. Talvez seja nossa época ou nossa avançada idade que nos permitam hoje melhor compreender as frívolas palavras de Montesquieu: heureux le peuple dont l’histoire est ennuyeuse (feliz o povo cuja história é monótona); mas não é necessário ser profeta para predizer que a ânsia pela segurança, em especial pela segurança jurídica, será, no futuro, cada vez mais perceptível e mais fervorosa.

O crescente valor que se começa a atribuir novamente à segurança jurídica revela o reconhecimento de que ela é exigência essencial até para as ideologias jurídicas orientadas exclusivamente pelo bem comum; tem sido invocada, mesmo nos Estados autoritários, como fundamento da organização comunitária. A lei é a vontade do poderoso; sua infração equivale, portanto, a uma violação ao dever de fidelidade à autoridade; por isso é considerada ilícita e contrária à segurança jurídica. Esta fundamentação da segurança jurídica na obediência à autoridade estatal está intimamente ligada à orientação exclusiva do Direito ao bem comum: as ordens da autoridade servem para que os cidadãos colaborem na realização do bem comum e evitem os conflitos entre si. Esta construção conceitual de segurança jurídica a partir da idéia de autoridade e de bem comum é incompatível, no entanto, com certos fenômenos jurídicos que não podem ser ignorados. Fosse o Direito apenas um comando da autoridade, não seria possível explicar a sujeição da própria autoridade ao Direito nem, portanto, o Estado de Direito e os direitos subjetivos públicos. Tais conceitos devem ser explicados, do ponto de vista formal, pelo conteúdo positivo da idéia de segurança jurídica e, do ponto de vista material, pelo conteúdo individualista da idéia de justiça. Também a independência dos juízes seria incompreensível se o Direito fosse apenas ordem do chefe a serviço do bem comum, se não ostentasse sua legitimidade, independente da mera idéia de finalidade e obediência às determinações. A independência do juiz não é senão a liberdade da ciência aplicada à ciência jurídica prática. A idéia de Direito não é, no entanto, pura idéia finalística a serviço do bem comum – pois, neste caso, não se distinguiria da Política e da Administração. Orienta-se, ao contrário, pelos princípios de legalidade e de justiça; interpreta as determinações legais a partir da segurança jurídica, sob o ponto de vista da justiça, ou seja, da igualdade. Mas não é necessário destacar a importância do papel que, nesta matéria, desempenha a idéia de finalidade. Extraordinário foi o serviço prestado pelas novas teorias jurídicas ao enfatizá-lo. Ao contrário, o que se faz necessário reforçar agora é que a idéia de finalidade deve ser aplicada nos limites da legalidade e da justiça. Da mesma forma que o Estado de Direito, os direitos subjetivos públicos, a autonomia do judiciário e da ciência do Direito, o conceito de Direito orienta-se pela idéia de justiça e de segurança jurídica. Enquanto a idéia de justiça qualifica a essência do Direito como solução de conflitos com base em normas gerais, a segurança jurídica agrega-lhe o subseqüente caráter de positividade. Huizinga, em seu belo livro Nas sombrasmatinais (13), escreve que da necessidade de segurança decorre tudo o que denominamos Direito; podemos recolher sua frase, mas sob outra forma: da necessidade de segurança decorre tudo o que denominamos Direito positivo.

As idéias de justiça e segurança jurídica, elementos individualistas do Direito, não se encontram totalmente vinculadas ao pensamento supra-individualista de bem comum, mas sua vinculação é pelo menos tão estreita quanto o conceito de Estado de Direito, de direito subjetivo público, de independência dos tribunais, de autonomia da ciência jurídica e, finalmente, do próprio conceito de Direito. Nem as autoridades estatais querem abandonar estes valores, afirma novamente, com ênfase, Del Vecchio: La sovranità della legge e l’eguaglianza dei cittadini dinanzi ad essa rimangono i cardini dello stato fascista, il quale è perciò, e vuol essere, Stato di diritto (a soberania da lei e a igualdade do cidadãos diante dela continuam sendo os pontos cardeais do Estado fascista que, graças a isso, pretende ser um Estado de Direito). Também e acima de tudo, a liberdade pertence à sua essência. É mais fácil compreender hoje do que no passado que a vida de uma nação e de um indivíduo se interpenetram. (14)

Bem comum, justiça e segurança jurídica exercem um condomínio sobre o Direito – não em perfeita harmonia, mas, bem ao contrário, em viva antinomia. O predomínio de um ou de outro destes valores em relação aos demais não pode ser determinado por nenhuma norma – tal norma não existe –, mas apenas pela opção responsável de cada época. O Estado de polícia dava preferência ao bem comum, o Direito Natural à justiça, o positivismo à segurança jurídica. O Estado autoritário iniciou novo processo evolutivo, colocando novamente o bem comum no primeiro plano. Mas a História ensina que não faltará a antítese e que uma nova época deverá reconhecer, mais do que ocorre no presente, ao lado do bem comum, o elevado valor da justiça e da segurança jurídica (15). Justitia una virtus omnium est domina et Regina virtutum (a justiça é a mesma virtude para todos e é a rainha das virtudes), Cicero – De Officiis – IIIc. 28.


1. Apresentação feita no Congresso do Instituto Internacional de Filosofia do Direito, em Roma, publicada no seu anuário – 1937/1938

2. Indivíduo, Estado e CorporaçãoBasel, 1935, p. 26

3. Ferdinand TönniesThomas Hobbes –  3ª ed. 1925, p. 219:  A justiça no tratamento pode ser dividida em comutativa e distributiva. Na verdade, a injustiçanão está na desigualdade da coisaque deve sertrocadaou distribuída, mas na desigualdade pretendida poralguémemrelação a seuparceiro, contra a naturezaou a razão.

4. Georges GurvitchL´expérience juridique et la philosophie pluraliste du droit (A Experiência Jurídica e a Filosofia Pluralista do Direito) Paris, 1935, p. 99

5. opus cit., p. 4

6. Radbruch – Rechtsphilosophie (Filosofia do Direito), 3ª ed., 1932, p. 29 e sgs.

7. Veja-se a respeito Demogu – Lês notions fondamentales du droit privé (As noções fundamentais do Direito Privado), 1911, p. 63 e sgs; também Max Rümelin - Rechtssicherheit (Segurança Jurídica), 1924

8. Com outra fundamentação, Wilhelm Sauer – Grundlagen der Gesellschaft (Fundamentos da Sociedade),  1924, p. 443, chama a segurança jurídica de justiçaestrita.

9. Luigi Secco – Luigi Knapp e sua Filosofia do Direito, 1936

10. vide Justus Wilhelm Hedemann – Die Flucht in die Generalklauseln (A fuga para as cláusulas gerais), 1933

11. Max Weber – Wirtschaftsgeschichte (História da Economia), 1923, p. 289 e sgs.

12. Jacob Buckhardt – Weltgeschichtliche Betrachtungen (Considerações sobre a História Universal), 3. ed., 1918, p. 260 e sgs.

13. Huizinga – Im Schatten von morgen, 1935, p. 32

14. Giorgio Del Vecchio – Stato fascista e Vecchio regime(O Estado fascista e o velho regime), 2. ed., 1932

15. A. Roberto Goldschmidt – Studi in memória di Aldo Albertoni, (Estudos em memória de Aldo Albertoni)III, p. 505