VI

O relativismo na Filosofia do Direito (1)

 

Em uma época como a nossa, é necessário ter muita coragem para confessar-se relativista. Ingressamos em um período de valores tidos como absolutos, de cujas alturas manifesta-se geralmente certo desdém e até desprezo pelo relativismo. A imagem do cético sorridente não representa mais a figura ideal do sábio. Interpreta-se o relativismo como falta de convicção e caráter. Para destruir estes mal-entendidos, proponho-me a mostrar que relativismo não significa carência de convicção, mas, ao contrário, forte convicção, até mesmo agressiva.

Desenvolveu-se o sistema relativista em oposição à doutrina do Direito Natural. Esta oposição baseia-se em determinados princípios metodológicos, em particular na concepção de que há uma idéia de Direito justo unívoca, cognoscível e demonstrável. A contestação desta tese parte de dois fundamentos, um dos quais se situa no campo das ciências experimentais e outro na teoria do conhecimento. A História do Direito e o Direito Comparado descobriram infindável variedade de manifestações da realidade jurídica, nas quais não há qualquer sinal de tendência a uma unidade ideal. Por outro lado, o criticismo de Kant provou-nos que tanto as formas de cultura quanto as formas de Direito são absolutas e têm validade universal, embora seu conteúdo dependa de dados empíricos e seja, portanto, totalmente relativo.

O relativismo em Filosofia do Direito parte da tese segundo a qual qualquer concepção sobre o Direito justo só terá validade desde que pressuposta determinada situação social ou determinado sistema de valores. As situações sociais são infinitamente mutáveis; o número de sistemas de valores, ao contrário, é limitado. É, por isso, possível desenvolver-se um sistema de valores integral, aplicável a determinada situação social; mas é impossível decidir sobre qual dentre estes vários sistemas seja científico, demonstrável e irrefutável. A escolha entre eles só poderá ser feita a partir de profunda decisão da consciência individual. Isto significa que o relativismo corresponde a uma renúncia na razão teórica e simultaneamente a uma mais forte exigência da razão prática. Limitação para o pensamento científico, mas não covardia ou indiferença para o querer moral. O relativismo contém, pois, ao mesmo tempo, o desafio à luta contra a convicção do adversário, cuja indemonstrabilidade ele demonstra, e uma exortação ao respeito pela convicção do contendor, cuja irrefutabilidade ele exibe: disposição para a luta, de um lado, tolerância e justiça no julgamento, de outro. Esta é a Moral do relativismo. Este é o método relativista representado, na Filosofia do Direito alemã, por Max Weber, Georg Jellinek, Hans Kelsen e Hermann Kantorowicz.

Mas o relativismo é mais do que um método da Filosofia do Direito. É também parte essencial do sistema filosófico-jurídico. Não se trata pura e simplesmente de um agnosticismo; é mais que isso: é fonte importante para a visão objetiva.

Acima de tudo, o relativismo é a única origem possível para a força obrigatória do Direito Positivo. Se existisse um Direito da natureza, uma verdade jurídica única, cognoscível e demonstrável, não seria possível, de forma alguma, explicar porque o Direito Positivo contrário a esta verdade absoluta teria força obrigatória – ele deveria desaparecer, como um erro desmascarado por tal verdade. A obrigatoriedade do Direito Positivo só pode fundar-se no fato de que o Direito justo é incognoscível e indemonstrável. Sendo impossível o julgamento sobre a verdade ou falsidade das inúmeras concepções jurídicas e sendo necessário, de outra parte, um Direito único para todos os cidadãos, cumpre ao legislador, colocado diante de tal necessidade, cortar, com um golpe de sabre, o nó górdio que a ciência não pode desfazer. Sendo impossível descobrir o que seja justo, torna-se necessário determinar o que seja Direito. Em substituição a um impossível ato de verdade, torna-se necessário um ato de autoridade. O relativismo conduz ao Positivismo.

Mas, ao mesmo tempo, o relativismo fornece o parâmetro para avaliação do Direito Positivo e os postulados aos quais este está obrigado a adequar-se. Conforme já dissemos, a decisão do legislador não é ato de verdade, mas de vontade e autoridade. Ela pode emprestar força obrigatória a determinada opinião jurídica, mas jamais emprestar-lhe força de convicção; pode encerrar a luta de poder entre Partidos conflitantes, mas nunca a luta das convicções. A solução do conflito de opiniões ultrapassa a competência do legislador. O poder legiferante lhe é confiado sob a condição de deixar intocável o combate ideal entre as diversas convicções jurídicas. Ao mesmo tempo em que o relativismo lega ao Estado o direito de legislar, limita-o e obriga-o a respeitar determinadas regras de liberdade e subordinação: a liberdade de pensamento, a liberdade de ciência, a liberdade de consciência e a liberdade de imprensa. O relativismo conduz ao liberalismo.

Para aquele que não se deixou convencer pela opinião adotada e sancionada pelo legislador, o Direito Positivo não passa de força bruta e autoridade amoral. Mais precisamente: o legislador possui apenas aquele mínimo de autoridade haurida de sua função de estabelecer a ordem e a segurança, mas que pode ser contrabalançado pelo peso de eventual injustiça, contida, segundo o convencimento do cidadão, na regra positiva. Desta circunstância decorrem importantes conseqüências para o campo do Direito Penal. Retribuição e recuperação pela pena partem do pressuposto da superior dignidade moral do Estado, encarregado da punição, em relação ao inferior valor moral do culpado, que deve ser punido. O acusado por manter convicção contrária à adotada pelo Estado, da mesma forma que o criminoso político ou social, não são, no entanto, pessoas de valor inferior, mas apenas homens com outra forma de pensar. Por isso fracassam os fins da pena – a retribuição e a recuperação – em relação a eles. Também a missão de intimidação – pois o martírio tem, muitas vezes, algo de sedutor para o criminoso para ele. Resta ao Estado apenas interná-lo sem danos, o que corresponde muito mais a uma medida de combate, a uma forma de captura durante uma guerra interna, do que a uma penalidade criminal. O relativismo conduz a umDireitoPenalespecíficopara os criminososporconvicção.

Direito Positivo é ato de autoridade a serviço da ordem e da segurança jurídicas, com o objetivo de encerrar a luta de convicções; ele só pode cumprir esta tarefa de segurança sob a condição de a ele sujeitarem-se não só as partes conflitantes, mas também o próprio legislador. Não se lograria segurança jurídica se o legislador pudesse, arbitrariamente, criar exceções à lei. A legislação lhe é confiada apenas sob a condição de ele mesmo sujeitar-se ao império da lei. O Estado subordinado a suas próprias leis denomina-se Estado de Direito. O relativismo conduz ao Estado de Direito.  

Abstenho-me de demonstrar detalhadamente que, sem separação de Poderes, não existe Estado de Direito. Se o Poder Executivo tivesse o poder de legislar, poderia, a qualquer momento, livrar-se das leis às quais deveria sujeitar-se. Na medidaemque o relativismo conduz ao Estado de Direito, exige, ao mesmotempo, a separação de Poderes.

O relativismo afirma que o conteúdo de verdade das diversas convicções políticas e sociais não pode ser cientificamente apreendido e, por isso, todas elas são tratadas como equivalentes. Mas tratá-las como equivalentes significa tratar todos os homens como iguais. Diferenças entre pessoas, em razão de estado, classe ou raça, só podem fundar-se em insensibilidade intelectual ou moral na busca de pretensa verdade política e social única. Na realidade política, no entanto, a igualdade entre os homens só pode ser lograda de forma aproximada; a concretização absoluta, com característica de unanimidade, é impossível. A igualdade política desemboca, destarte, no sistema majoritário, na Democracia. O relativismo exige o Estadodemocrático.

Democracia, por seu turno, pressupõe relativismo – tese que Kelsen fundamentou de maneira impressionante e convincente. Ela consiste na disposição de confiar o poder a qualquer espécie de convicção que possa conquistar a maioria, sem questionar seu conteúdo e valor. Esta atitude só pode ser considerada conseqüente se for admitida a equivalência de todas as opiniões políticas e sociais, ou seja, se for aceito o relativismo.

Neste momento, encontramo-nos ante uma contradição aparentemente insolúvel. Parece que o relativismo se autodestrói. Parte da equivalência prática de todas as opiniões e sistemas políticos e sociais, da equivalência, portanto, do Estado democrático liberal com o Estado ditatorial e o corporativo, para desembocar na identificação entre relativismo e democracia.

A solução deste dilema deriva do caráter formal da Democracia. A liberdade de renunciar à liberdade é inerente à idéia de liberdade. Por esta razão, uma ditadura pode estabelecer-se sob forma democrática. Democracia é uma forma de Estado entre outras e, ao mesmo tempo, é o fundamento universal de todas as formas de Estado. É o fundamento não apenas da origem, mas também da existência de todas as formas de Estado. Nenhum Estado pode prescindir definitivamente de seu fundamento democrático. A maioria de hoje não pode fundar uma ditadura que a maioria de amanhã ou depois de amanhã não possa destruir. Nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet (ninguém pode transferir a outrem mais direitos do que tem). A Democracia pode abdicar em favor de uma Constituição ditatorial, mas não pode abdicar do direito de dispor sobre a própria Constituição. Não se trata aqui de uma impossibilidade apenas sociológica, mas também de uma impossibilidade jurídica. O direito a plebiscito sobre a Constituição é lei não escrita, é conteúdo tácito e evidente de todas as Constituições.

A Democraciaassimresultante, esta soberaniapopular, é tambémcomo vimos – conseqüênciainelutável do relativismo. A Democracia pode fazer qualquer coisa, exceto renunciar definitivamente a si mesma. O relativismo pode tolerar qualquer opinião, exceto aquela que pretenda ser absoluta. Daí resulta o posicionamento do Estado democrático a respeito de Partidos antidemocráticos. Acolhe todas as opiniões dispostas a competir ideologicamente com as demais e reconhece-as como equivalentes, mas quando uma opinião considera-se absolutamente válida e por isso pretende conquistar ou manter o poder independentemente da maioria, torna-se necessário combatê-la por todos os meios, não apenas com idéias e discussões, mas com o poder do Estado. O relativismo é a tolerânciauniversal, excetoemrelação à intolerância.

Até aqui, nossa dedução foi puramente ideológica e não levou em conta a realidade sociológica. Nosso pressuposto foi a igualdade de chances a todas as convicções jurídicas discrepantes. A única diferença admitida entre elas foi a que resulta da força persuasiva das próprias convicções, do poder ideológico das idéias. Mas a esta igualdade fictícia entre as chances de todas as opiniões corresponde, na realidade, infinita desigualdade. Na competição entre as idéias serão vitoriosas aquelas que contarem a seu favor com significativo poder social, quer do capital, quer da massa. Torna-se necessário, então, neutralizar essas forças irracionais, a fim de que possa concretizar-se o poder específico das idéias, sua capacidade ideológica. O socialismo corresponde à destruição de todas as forças irracionais e anti-racionais, à liberação do poder ideológico intrínseco das idéias, à afirmação da necessidade da liberdade. E assim o relativismo desemboca no socialismo.

As idéias aqui desenvolvidas são tradicionais, mas acredito que lhes dei nova fundamentação, especialmente no que diz respeito ao relativismo. A ars nesciendi (arte da ignorância) mostrou-se fecunda, uma vez mais. Deu-se um milagre lógico: o nada extraiu de suas entranhas o tudo. Partimos da impossibilidade de conhecer o Direito justo e terminamos aceitando considerável grau de conhecimento dele. Tiramos do próprio relativismo conseqüências absolutas, em especial quanto aos postulados tradicionais do Direito Natural clássico. Contrariando o princípio metodológico do Direito Natural, tornou-se possível fundamentar as exigências objetivas do Direito Natural: os direitos do homem, o Estado de Direito, a separação de poderes e a soberania popular. Liberdade e igualdade, ideais de 1789, ressuscitaram das ondas céticas em que pareciam submersas. São os fundamentos indestrutíveis dos quais podemos nos distanciar, mas aos quais torna-se necessário regressar sempre.

(1) Apresentado em Lyon e publicado nos Archives de Philosophie du Droit, nº ½, 1934