Temas políticos


DEMOCRACIA: SEU CONCEITO E SEU VALOR1

 

Senhor Presidente do Senado, Senhores Senadores, Senhor Senador Roberto Berro.

Creio providencial a circunstância de ser minha primeira oração parlamentar o elogio de um eminente líder da democracia na América - o Senador Roberto Berro, que nos honra com sua visita a esta Casa.

O tema de minha estréia nesta tribuna estava predeterminado pelo drama social e político que vivemos - seria uma obstinada pro­fissão de fé na praticabilidade e na aptidão civilizadora da democracia, mau grado a evidente pobreza de sua refração nos métodos e no estilo de nossa vida pública. Aos ouvidos dos incréus e dos céticos, essa mensagem de certeza ressoaria, talvez, como um discurso aos surdos ou uma boutade de lirismo cívico.

Que circunstância mais favorável à evidenciação da verdade e da altitude moral desse regime político, que Bergson disse ser de origem e de essência evangélicas, que esta de, saudando um grande democrata, registrar a esplêndida realidade da democracia num trecho do Novo Mundo.

No Uruguai, há quase meio século, processa-se, triunfalmente, uma sistemática e contínua experimentação sociológica dos ideais libertários, formulados nas páginas do Ariel, de Enrique Rodo. Essa pequena obra-prima do gênio político da América é uma irrecusável demonstração histórica do êxito do processo democrático, no mundo latino-americano.

A realização de um humanismo político pleno é a constante obsessão dos seus estadistas, desde Ordonez. E num anseio obstinado de perfeição cívica, como os artistas torturados pela exigência de ex­pressão e de modelagem da visão interior de um ideal de beleza, seus homens públicos corrigem e purificam, continuamente, o processo democrático, plasmando quadros institucionais, padrões de comportamento público e estilos de vida administrativa, que integram, em síntese superadora, muitas antinomias de conduta humana que, não identificadas, constituem a essência do drama político de numerosas repúblicas sul-americanas.

Na democracia uruguaia, as exigências de autoridade, de disciplina e de ordem conjugam-se, harmoniosamente, com os imperativos vitais de liberdade; o indivíduo e o Estado não se defrontam como inimigos inseparáveis; os reclamos do bem comum não mutilam as dimensões totais da pessoa humana.

Neste hemisfério, onde tantos povos ainda buscam a fórmula do seu próprio destino e a afirmação da estrutura própria de sua existência coletiva, através de regimes revolucionários, ditatoriais ou anárquicos, a República do Uruguai é uma lição, um apelo, uma revelação de sabedoria política, de estabilidade institucional, de evolução social ritmada e orgânica - sem saldos catastróficos e, por isto, criadora de bens culturais e de elementos de civilização.

No Uruguai, D. Quixote, enfim, converteu-se do seu idealismo utópico, e se fez Artigas, renunciando à luta contra moinhos de vento, para investir, com realismo sereno e criador, contra hediondas construções do mundo moderno: contra a injustiça social, o capitalismo pagão, o individualismo revolucionário, o marxismo desagrega­dor, o nacionalismo anti-humano.

E essa epopéia de Artigas, de fraterno convívio nacional e pacífica cohabitação continental, essa epopéia cantada pelo gênio de Zorilla de San Martin aí está sob os nossos olhos, como revelação maior da praticabilidade e da vocação civilizadora da democracia na América Latina.

Senhor Senador Roberto Berro,

A honrosa presença de Vossa Excelência nesta Casa do Congresso encerra uma mensagem que nós, brasileiros, devemos interpretar e, urgentemente, viver com energia e decisão.

"O espírito da democracia ensinou - o pulcro estilista, que foi Enrique Rodo é para a nossa civilização um princípio de vida, contra o qual seria inútil reagir. Os desencantos sugeridos pelas imperfeições de sua forma histórica atual geram incompreensão sobre o que esse regime possui de definitivo e de fecundo. Mas, cabe pensar na educação da democracia e na sua reforma. Cabe pensar em que, progressivamente, se encarne, no sentimento do povo e nos seus costumes, a idéia das subordinações necessárias, a noção das superioridades autênticas, o culto, consciente e espontâneo, de tudo o que multiplica a cifra do valor humano".

E noutro fragmento do Ariel, o sociólogo uruguaio, insistindo na necessidade da inoculação de um vigoroso conteúdo ético no pro­cesso democrático, observa, com justeza e acuidade: "abandonada a si mesma, sem a constante retificação de uma autoridade moral, que a purifique e canalize suas tendências no sentido da dignificação da vida - a democracia destruiria toda a idéia da superioridade que se não traduzisse em maior ou mais ousada aptidão para as lutas de interesse, que são a forma mais ignóbil das brutalidades da força. A multidão, a massa anônima, não vale por si mesma: ela será um instrumento de barbárie ou de civilização, conforme careça ou não, do coeficiente de uma alta direção moral."

E, concluindo esta análise magistral do condicionamento ético da vida democrática, observa Rodo: "há uma verdade profunda no paradoxo de Emmerson, que exige que cada país seja julgado segundo sua minoria, e não conforme a maioria dos seus habitantes." A igualdade democrática, longe de opor-se à purificação dos costumes e das idéias, é o mais eficaz instrumento de progresso espiritual, é o ambiente providencial da cultura. Ela será valorizada por tudo que favoreça o predomínio do espírito e da inteligência. Dizia Tocqueville que a poesia, a eloqüência e a graça do espírito, os fulgores da imaginação e a profundeza do pensamento, todos esses dons da alma colaboraram na obra da democracia e a ela serviram".

Senhor Senador Roberto Berro. Esta página do iluminado mestre da democracia uruguaia, evoquei-a nesta Câmara Alta da Re­pública porque nela se resume um itinerário retificador da democracia nacional - ameaçada pelo rolo compressor do homem-massa, pelo populismo telúrico, pela demagogia ululante, pela técnica revolucionária do imperalismo comunista, pela ausência de ascetismo na vida pública e de um austero amor ao bem comum, enfim, pela carência de um humanismo político, pleno de vivência dos valores da civilização cristã, que geraram nossa realidade democrática e que são a fonte única de sua ressurreição eventual.

Senhor Senador. Permita-me Vossa Excelência que considere como maior homenagem à sua figura de estadista eminente e de legislador ilustre, esta que rendo à sua grande Pátria, ao apontar, como salvadores para a nossa democracia em crise, os diagnósticos políticos traçados pelo pensador uruguaio que escreveu esse código de perfeição humana, que é Ariel.

E Vossa Excelência, Senhor Senador Roberto Berro, é, para nós, uma das encarnações mais puras, na vida pública do Uruguai, desses ideais democráticos evangelizados pelo visionário genial da grandeza americana, que foi Enrique Rodo.

 



1 Oração de saudação por ocasião da visita do Sr. Roberto Berro, senador da República Oriental do Uruguai, em 21.10.1955.