Jacy de Souza Mendonça me concedeu a honra de prefaciar sua mais nova obra, O Homem e o Estado, a qual representa, conforme destaca o próprio autor, a coroação de seus muitos (e por todos nós reconhecidos) anos de dedicação à Filosofia do Direito. Sua dedicação, seu dinamismo e sua inquietação científica franquearam-lhe a compreensão de certos fenômenos que lhe permitiram esta contribuição, na Filosofia Política.

O Professor Jacy de Souza Mendonça detém a rara capacidade de compreender e dominar os dilemas que acometem a vida em sociedade, de forma que sua análise acerca do convívio humano, o traçado de seus problemas e a sugestão de alternativas bem refletem a visão de um autor que, seja no âmbito da Filosofia do Direito, seja na seara da Filosofia Política, apresenta uma irrepreensível maturidade intelectual quanto às diversas dimensões que cercam o delicado e conturbado tema da sociabilidade humana.

Outra virtude merece ser, ainda, destacada: a capacidade em ultrapassar os limites da exposição teórica sobre os diversos temas que compõem seu estudo, amealhando dados históricos e fatos concretos em sua narrativa doutrinária. A filosofia deixa, nas mãos do autor, o seu plano eminentemente teórico, encontrando respaldo prático e real. A questão da liberdade humana em face do Estado e da hipertrofia do Poder Político, por exemplo, são ilustradas com exemplos históricos e concretos.

Materialmente, destaca-se a visão liberal do autor, enquanto manifestação mais ponderada da sociabilidade humana (em comparação ao individualismo e ao socialismo). Jacy, nesse sentido, sem se descurar das demais concepções de sociabilidade humana, apresenta o seu meio-termo de ouro, o liberalismo.

Não se trata, porém, de um liberalismo individualizado, apartado da responsabilidade social. Trata-se de liberalismo voltado ao indivíduo em coletividade, capaz de levá-lo ao caminho da justiça, função esta precisada pelo autor como finalidade do Direito. “É – destaca Jacy – então uma restrição à liberdade, não sua negação, porque, ao mesmo tempo em que limita a ação, aponta o caminho para a realização da natureza humana – define o proibido e o permitido; mostra, no campo das opções, entre as alternativas disponíveis, o rumo correto para o exercício da liberdade”.

Jacy, nesse sentido, figura como um defensor da liberdade positiva, para me valer, aqui, da dicotomia proposta por Isaiah Berlin (embora, como se sabe, o pensador em questão rejeitasse essa noção, encampando uma concepção negativista de liberdade, pautada na ausência de interferências externas na atividade do indivíduo). “Ser livre (...) – dirá Berlin – significa não sofrer a interferência de outros. Quanto maior a área de não-interferência, mais ampla a minha liberdade.” (“Dois conceitos de liberdade, in. Isaiah Berlin: Estudos sobre a humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 230).

A tese desenvolvida pelo nosso grande mestre Jacy de Souza Mendonça é perspicaz e corajosa, merecendo nosso olhar mais atento e a inevitável reflexão posterior. O Direito, considerado, aqui, como o instrumento formal, positivado, que traduz a liberdade humana, no que se refere à escolha do bem ou do mal - em uma opção pelo lícito ou pelo ilícito - longe de ser uma interferência no âmbito da liberdade individual, será considerado exatamente como elemento potencializador da autonomia individual, ainda que reduza, quantitativamente, o âmbito de opção do indivíduo, caso majore, qualitativamente, sua capacidade de autogoverno, em face dos vícios que usualmente acometem a razão individual e coletiva.

A opção por esta concepção menos individualista de liberdade tem sofrido constantes críticas, por oferecer uma concepção de liberdade que impositivamente matiza o seu conteúdo com específicas qualificações, como o certo, o melhor, o superior, o justo. Na visão de seus críticos, uma concepção desta natureza nada mais seria “do que um disfarce capcioso para uma tirania bruta.” (Isaiah Berlin, op. cit, p. 236). A justificativa, consoante essa visão crítica, é a de que a identificação de um eu mais elevado, ideal, autônomo, na minha melhor forma (para se valer de alguns qualificativos em Isaiah Berlin), ou de um caminho específico para a “realização ontológica”, torna fácil que “eu me imagine coagindo outros para o bem deles, no interesse deles, e não no meu” (Isaiah Berlin, op. cit., p. 238).

O temor que permeia essa concepção qualitativa de liberdade é, porém, rechaçado, meticulosamente, pelo autor, que rejeita uma concepção assaz estatizante de sociabilidade humana. “O dramático – aponta criticamente Jacy – está em que o homem comum sonha também com um Estado perfeito e, ao acreditar que alguém o tenha descoberto, entrega-lhe a alma, até o momento em que percebe, já tardiamente, que o falso deus jogou-o no fogo do inferno ao arrebatar-lhe a liberdade e negar-lhe até o direito ao livre pensamento e à livre manifestação da palavra.”.

Ou seja, a identificação de uma liberdade positiva, qualificada, com um governo totalitário de esquerda ou de direita que almeja subjugar a liberdade humana por meio de uma noção de controle social, para além do qual nada existe, é, conforme destaca Charles Taylor, “uma caricatura absurda” (“What is Wrong with Negative Liberty”, in. Robert M. Stewart, Readings in Social & Political Philosophy, Nova Yorke: Oxford University Press, 1996, p. 98).

Esta percepção, fundada na liberdade individual socialmente responsável, de Jacy Mendonça é a nota característica de sua obra sobre Filosofia Política, invertendo a matriz usualmente presente na Filosofia Política, segundo a qual a compreensão do homem está condicionada ao estudo da sociedade humana (cf. Leo Strauss e Joseph Cropsey, Historia de la filosofia política. México: FCE, 2004, p. 17). Sua visão, centrada no homem livre, resulta na concepção segundo a qual “é, exatamente este homem, o objeto da Filosofia Política”. E não o Estado. O Estado, uma das formas possíveis de convívio social, é objeto da Ciência Política. À Filosofia Política, por sua vez, está destinado o estudo e preocupação com o indivíduo e sua sociabilidade

 

André Ramos Tavares